Quando a moça do café
opina
Mensagem original
enviada em: 15 maio 2004
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Segunda-feira pela manhã. Após lutar contra
o tempo, lá estou eu, na porta do cliente, com dez
minutos adiantado em relação ao horário
que marquei com ele (mas pelo menos duas horas adiantado em
relação ao horário que eu gostaria de
ter acordado naquele dia).
O prazo derradeiro para a apresentação do site
que ele encomendou findava-se na Sexta-feira passada. Contudo,
apesar de mais de um mês de negociações,
o material oriundo do cliente para execução
do trabalho, cujo contrato deixava claro a exigência
de chegar com quinze dias de antecedência, só
havia sido entregue por um motoboy mal-humorado na última
Quarta-feira, já no final do expediente. Isto após
três dias de comunicação inconclusiva
onde eu tentei, exaustivamente, orientar o envio das informações
por e-mail.
Como a base das informações já estava
montada e pré-aprovada pelo layout inicial, não
foi tão difícil passar as madrugadas que se
seguiram em claro para adequar o conteúdo recém
chegado ao padrão cuja base, preventivamente, já
estava pronta.
Claro que naquele fim de semana havia uma festividade de
uma grande amiga, que comemorava mais um ano de vida reunindo
uma turma que, alguns, há cerca de meia década
não se via. Só pude dar uma passada rápida,
por sorte o evento era nas redondezas do meu escritório.
Também havia um filme que passaria na televisão
por aqueles dias, daquele que eu quis ver por muito tempo.
Por sorte pude programar o vídeo para vê-lo depois.
As visitas corriqueiras do final de semana (parentes e amigos)
foram devidamente atendidas pelos que moram comigo, enquanto
eu permanecia inerte na montagem do material.
O conceito do trabalho foi baseado no briefing, aprovado
pelo cliente quando redigido novamente como pautas do desenvolvimento.
A escolha de cores baseada no estudo em função
da marca que o cliente possuía, o público alvo,
o meio de atuação, levando em contas legibilidade,
dinamismo e facilidade de navegação.
Os testes foram feitos com auxílio das pessoas amigas
que, por meio de softwares de mensagens instantâneas,
eram convidadas a ver o site e passar suas impressões
quanto ao funcionamento de algumas peculiaridades (janelas
pop-up, efeitos em flash, fontes abrindo corretamente). Até
o final da noite de domingo e começo da madrugada estavam
sendo esgotados os últimos testes de funcionamento
e um CD-ROM era gravado, para o caso do provedor não
contribuir no dia da reunião.
Algumas páginas eram impressas, embora estas eu não
pretendia usar, claro, pois a diferença de tonalidades
e mesmo de legibilidade no papel e na tela são gritantes
e poderia causar um desagrado.
O nervosismo era grande. O valor negociado do site era um
dos poucos, nos últimos meses, que estava pelo menos
perto da faixa ideal de cobrança. O acordo de pagamento
previu, contudo, que o sinal fosse dado após a primeira
apresentação. Esta já havia sido feita
por e-mail, na aprovação do layout, duas semanas
atrás. Mas o cliente preferia pagar diretamente.
A distância de meu escritório a empresa do cliente
e a urgência do projeto fez-me optar por receber no
dia da apresentação, poupando idas e vindas
desnecessárias que me tomariam ao menos duas horas
de horário comercial só de locomoção,
sem contar a meia hora básica de espera na companhia
da gentil secretária do cliente e dos primeiros vinte
minutos de conversas sobre banalidades das quais o cliente
parecia gostar bastante.
Logo, estava duplamente ansioso. Primeiro, porque estaria
recebendo, ali, o valor referente ao trabalho desgastante
dos últimos dias. Segundo, porque a aprovação
do projeto estava ligada ao recebimento da segunda parcela,
mais substanciosa e que me daria fôlego para os próximos
projetos. Terceiro, porque o cliente já estava um tanto
frustrado por não ter o site pronto na última
sexta-feira como era sua expectativa, e nossa conversa telefônica
onde eu reinterava a necessidade dos quinze dias de antecedência
na entrega do material e que, portanto, não era possível
resumir esse tempo para os dois dias que me restavam (se considerasse
findo o horário comercial da Quarta-feira, quando o
material chegou, na verdade um único dia), foi um tanto
desgastante na relação. Naquele momento foi
citado um projeto anterior onde algum concorrente, que já
havia tido problemas para atender o mesmo cliente, garantia
que as atualizações entravam no ar no dia seguinte.
Claro que meu contrato também previa isso. Explicar
ao cliente que inserção de material não
é a mesma coisa que atualização foi por
demais cansativo e optar por parar tudo e tentar fazer o mais
rápido possível me pareceu mais simples do que
convencê-lo a esperar no mínimo mais uma semana,
e me permitr fazer um trabalho com as devidas revisões,
com o devido cuidado e atenção.
Lá estava eu. Tenso. Passava pelo menos dez minutos
do horário de nossa reunião. Eu estava com um
pouco de olheiras ainda, e tinha quase certeza que havia vestido-me
de forma a não somente não me preocupar com
a cor das meias, como quase que absolutamente certo tendo
posto uma meia de cada cor. Faltava-me, a esta altura, coragem
para verificar e bom humor para achar divertido, caso fosse
verdade.
Meia hora depois do horário combinado, o cliente chegava
na empresa. Passou pela recepção me cumprimentando
friamente, e pediu-me pra esperar. Mais quinze minutos lendo
a revista Veja de três semanas atrás e então
a secretária autorizou minha entrada.
Estávamos agora um diante do outro. Ele parecia agitado,
querendo ver logo o que estava pronto e já perguntando
ansiosamente quanto tempo demoraria pra entrar no ar de verdade
(até aquele momento, estava publicado em endereço
de teste), sem antes ver o que eu havia feito.
Eu expliquei que, se tudo desse certo, no mesmo dia poderia
estar no ar, caso não houvesse nenhuma alteração.
Mas que contratualmente eu pedia ao menos dois dias, por questões
de eventuais instabilidades com o provedor. A palavra "contratualmente"
pareceu ter soado mal, e ele logo passou de agitado para carrancudo.
Ditei-lhe o endereço do site para que ele, de seu
laptop, pudesse visitá-lo. O laptop não estava
conectado na internet. Para convencê-lo, eu pedi a ele
que entrasse na página do UOL. Entrou a do cache. Então
eu dei um endereço qualquer pra ele. Não entrou.
Ele voltou a ficar agitado. Ligou pra secretária, perguntando
se alguém do CPD da empresa estava lá (não
havia CPD na empresa, e somente um profissional que entendia
um pouco sobre ligar
máquinas em rede, mas que na verdade tinha uma função
administrativa). Não havia chegado ainda. Eu então
mostrei-lhe o CD e pedi para que visse a partir dali, que
era a mesma coisa.
Olhou meio desconfiado, mas acabou aceitando.
Como o CD com um site web não abria via autorun,
eu precisei "pilotar" o equipamento até deixar
a página dele na tela. Foi quando percebi que havia
algum problema na calibração da tela do laptop,
pois estava tudo um tanto esverdeado (somente agora eu estava
vendo-o de frente, onde podia-se distingüir melhor o
que tem na tela diferente da visão semi-lateral
onde vê-se mais brilho difuso do que qualquer outra
coisa).
O cliente comentou que era sempre assim e que ele já
estava acostumado mesmo. Bem, tudo bem. O site estava na frente
dele.
Seu olhar curioso me deu a incômoda sensação
de que ele não tinha visto o layout que aprovou semanas
atrás por telefone. Suas perguntas sobre "Por
quê o menu está aqui? E este tipo de letra? Mas,
e essa cor de fundo?" foram me causando um profundo pânico.
Eu respondi a todas sempre citando, durante a explicação,
que o objetivo das decisões tomadas eram em funções
de determinadas questões "conforme o texto explicativo
que acompanhou o primeiro layout". Este trecho de minhas
explicações ele parecia ignorar.
Até que pegou o telefone e convocou, através
da secretária, uma mini-multidão de profissionais.
Desde o tal funcionário administrativo que sabia ligar
máquinas em rede até o diretor comercial e o
representante de vendas. Juntaram-se umas seis pessoas na
sala, além de mim e do dono. E então pediram
um café para todos (eu preferi água, pois meu
estômago não estava muito bem).
Vários dos comentários que surgiram em torno
do site que era visto meio esverdeado na tela era sobre a
frustração da expectativa de alguns dos funcionários,
que achavam que o site deveria parecer mais com o do concorrente
(um deles tentou acessar o site do concorrente para me mostrar
até ser avisado que o laptop estava fora da
rede e desistir embora eu tenha dito que havia visto
os sites dos principais concorrentes, que me foram passado
durante o briefing e fui devidamente ignorado, afinal,
minha proposta não estava parecendo com a do concorrente,
obviamente).
Eu suspirava fundo (discretamente) a cada comentário
de cada um dos profissionais que pareciam estar vendo o site
pela primeira vez, embora o layout original (que não
mostrava as fotos nem os textos, exceto uns "Nonono"
e imagens "tapa-buraco") estivesse disponível
para visita há duas semanas. Parei de argumentar e
resolvi deixar todos falar, apenas anotando as observações
que achava pertinente (poucas, na verdade).
Quando o café foi servido, dois dos funcionários
discutiam sobre o fato de que um preferia azul o outro preferia
laranja. Nenhum dos dois parecia disposto a compreender que
não somente não havia azul ou laranja na identidade
visual da empresa, como também não remetiam
a soluções eficientes dentro da proposta do
site. Eu também, a esta altura, não estava disposto
a explicar. Apanhei minha água, agradeci a gentil senhora
que me serviu e foi então que meu cliente a chamou:
Dá uma olhada nisso aqui.
A gentil senhora, cujo nome eu não me lembro, parecia
ter a mesma intimidade com computadores que um rinoceronte
teria com vasos de porcelana. Ela não fazia questão
de esconder o desconforto em lidar com os equipamentos, mesmo
que fosse só para dar uma olhadinha. Solícita,
viu na tela e comentou:
Bonito, né?
O que a senhora achou da cor de fundo?
Amarelo. Eu gosto de amarelo. Parece até a
cor da parede do "hall" de entrada. Mas tá
meio esverdeado aí, não tá não?
Alguém dos funcionários explicou que era um
problema do monitor do laptop. Ela então disse:
Ah, tá. Bonito. Parabéns, viu?
Quando ela disse isso olhando pra mim, senti vontade de abraçá-la.
Ela não sabia nada de internet, de design, de projetos
direcionados, de briefing. Mas soube ao menos ser simpática
e valorizar um trabalho que, mesmo não sabendo o que
envolvia, identificava como algo que deve ter sido dispendioso.
Ou somente percebeu o meu desânimo, e numa atitude maternal,
tentou fazer-me sentir melhor. Conseguiu. Eu apenas agradeci,
meio sem graça:
Obrigado...
Ela recolheu as xícaras. Meu copo ficou. Saiu da sala.
Os outros continuaram na discussão, enquanto eu apenas
pensava, com meus botões, qual teria sido a intenção
do cliente em pedir a opinião dos subalternos. Estaria
ele inseguro com o resultado final? Ou ele estava incomodado
com minhas contra-argumentações as observações
que ele fazia e resolveu chamar "reforço"?
Quando os subalternos começaram a perguntar se era
possível eu montar outras opções para
escolha, senti-me acuado.
O contrato, assinado por ambas as partes há quase
um mês atrás, previa que qualquer alteração
no layout após a aprovação deste seria
cobrada novamente. Meditei um pouco sobre a eficiência
de citar essa cláusula contratual naquele momento,
onde o cliente já havia deixado bem claro que, por
ele, rasgava o contrato e me obrigaria a fazer o que ele estava
mandando sob o risco de não me pagar. Claro que isso
não foi dito com todas as palavras, apenas entendido
subliminarmente.
Propus então um meio-termo:
O que acha de publicar o site hoje, do jeito que está,
e vocês definirem quais alterações querem
fazer, para que eu pense em um novo prazo?
Tive o cuidado de não citar novos valores. Ainda não
havia recebido nada e cada vez mais o risco de não
receber nada mesmo pairava sobre minha mente cansada pelas
noites mal dormidas que antecederam aquele episódio.
O cliente pensou um pouco e resolveu concordar.
Então você coloca no ar hoje?
Suspirei fundo mais uma vez:
Até o final do dia.
Então tá. Mais para o final da semana
marcamos outra reunião então.
Ótimo. Ganharia uma semana pra tentar não pensar
no assunto. Os demais funcionários começaram
a dispersar. Eu levantei-me, mas não saí da
sala. Então o cliente tocou no meu braço e disse:
Eu te ligo.
Foi quando eu comentei, um tanto constrangido:
Ãh... precisamos acertar o pagamento.
Ele parou e fitou-me.
Não era somente após a aprovação?
Eu então retruquei:
Você aprovou há duas semanas atrás.
Ficou acertado que eu receberia a primeira parte quando viesse
pra cá de novo.
Ele parou diante de mim, resmungou algo que eu não
entendi e então disse:
Espere um pouco.
Voltou ao telefone e pediu para a secretária ligar
pra moça do financeiro. Eu teria achado graça
(ele estava na porta diante dela, e ao invés de falar
pessoalmente voltou ao telefone, do outro lado de sua sala).
Não achei quando a secretária disse que ela
não estava. Ele então voltou-se pra mim:
Faz o seguinte. Deixa aí o número da
sua conta e eu te faço o depósito.
Suspirei novamente, desta vez sem tentar disfarçar.
Puxei uma folha do meu bloco de anotações, coloquei
os dados bancários e o valor. Ele ainda perguntou que
banco era e, diante de minha resposta, ensaiou alguma zombaria,
do tipo: "puxa... justo esse banco horrível".
Deixei o papel com a secretária e saí, dizendo
que esperava a ligação dele no final da semana.
Aliás, eu mesmo precisei ligar no final da semana,
porque o depósito ainda não havia sido feito.
Isso que era ainda a primeira parcela, enquanto eu esperava,
até lá, já ter recebido tudo.
No final das contas, conseguimos chegar num meio termo onde
meu prejuízo não foi tão grande. O site
foi pro ar (depois de seis meses foi trocado por outro, feito
por outro profissional que trocou o amarelo de fundo pelo
laranja). Mas eu recebi corretamente, com algum atraso, mas
recebi.
O site não existe mais, exceto em algum backup esquecido.
A empresa eu não sei, perdi o contato. Muito tempo
depois é que fui saber que ganhei o apelido de "meião",
porque eu estava, realmente, com uma meia de cada cor naquele
dia, e nenhuma delas combinava com o sapato.
Aprendi algo com todo o episódio.
Primeiro, que a maioria dos clientes não vai entender exatamente
a proposta do seu site até vê-lo completo, com seu próprio
conteúdo. Segundo, que o contrato só é lido superficialmente.
Terceiro, que reuniões com clientes acontecendo após uma seqüência
de noites mal dormidas me deixam suficientemente anestesiado
pra não comprar brigas desnecessárias.
Rafael B. Dourado
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