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Quando a moça do café opina

Mensagem original enviada em: 15 maio 2004
Por Rafael Dourado

Segunda-feira pela manhã. Após lutar contra o tempo, lá estou eu, na porta do cliente, com dez minutos adiantado em relação ao horário que marquei com ele (mas pelo menos duas horas adiantado em relação ao horário que eu gostaria de ter acordado naquele dia).

O prazo derradeiro para a apresentação do site que ele encomendou findava-se na Sexta-feira passada. Contudo, apesar de mais de um mês de negociações, o material oriundo do cliente para execução do trabalho, cujo contrato deixava claro a exigência de chegar com quinze dias de antecedência, só havia sido entregue por um motoboy mal-humorado na última Quarta-feira, já no final do expediente. Isto após três dias de comunicação inconclusiva onde eu tentei, exaustivamente, orientar o envio das informações por e-mail.

Como a base das informações já estava montada e pré-aprovada pelo layout inicial, não foi tão difícil passar as madrugadas que se seguiram em claro para adequar o conteúdo recém chegado ao padrão cuja base, preventivamente, já estava pronta.

Claro que naquele fim de semana havia uma festividade de uma grande amiga, que comemorava mais um ano de vida reunindo uma turma que, alguns, há cerca de meia década não se via. Só pude dar uma passada rápida, por sorte o evento era nas redondezas do meu escritório. Também havia um filme que passaria na televisão por aqueles dias, daquele que eu quis ver por muito tempo. Por sorte pude programar o vídeo para vê-lo depois. As visitas corriqueiras do final de semana (parentes e amigos) foram devidamente atendidas pelos que moram comigo, enquanto eu permanecia inerte na montagem do material.

O conceito do trabalho foi baseado no briefing, aprovado pelo cliente quando redigido novamente como pautas do desenvolvimento. A escolha de cores baseada no estudo em função da marca que o cliente possuía, o público alvo, o meio de atuação, levando em contas legibilidade, dinamismo e facilidade de navegação.

Os testes foram feitos com auxílio das pessoas amigas que, por meio de softwares de mensagens instantâneas, eram convidadas a ver o site e passar suas impressões quanto ao funcionamento de algumas peculiaridades (janelas pop-up, efeitos em flash, fontes abrindo corretamente). Até o final da noite de domingo e começo da madrugada estavam sendo esgotados os últimos testes de funcionamento e um CD-ROM era gravado, para o caso do provedor não contribuir no dia da reunião.

Algumas páginas eram impressas, embora estas eu não pretendia usar, claro, pois a diferença de tonalidades e mesmo de legibilidade no papel e na tela são gritantes e poderia causar um desagrado.

O nervosismo era grande. O valor negociado do site era um dos poucos, nos últimos meses, que estava pelo menos perto da faixa ideal de cobrança. O acordo de pagamento previu, contudo, que o sinal fosse dado após a primeira apresentação. Esta já havia sido feita por e-mail, na aprovação do layout, duas semanas atrás. Mas o cliente preferia pagar diretamente.

A distância de meu escritório a empresa do cliente e a urgência do projeto fez-me optar por receber no dia da apresentação, poupando idas e vindas desnecessárias que me tomariam ao menos duas horas de horário comercial só de locomoção, sem contar a meia hora básica de espera na companhia da gentil secretária do cliente e dos primeiros vinte minutos de conversas sobre banalidades das quais o cliente parecia gostar bastante.

Logo, estava duplamente ansioso. Primeiro, porque estaria recebendo, ali, o valor referente ao trabalho desgastante dos últimos dias. Segundo, porque a aprovação do projeto estava ligada ao recebimento da segunda parcela, mais substanciosa e que me daria fôlego para os próximos projetos. Terceiro, porque o cliente já estava um tanto frustrado por não ter o site pronto na última sexta-feira como era sua expectativa, e nossa conversa telefônica onde eu reinterava a necessidade dos quinze dias de antecedência na entrega do material e que, portanto, não era possível resumir esse tempo para os dois dias que me restavam (se considerasse findo o horário comercial da Quarta-feira, quando o material chegou, na verdade um único dia), foi um tanto desgastante na relação. Naquele momento foi citado um projeto anterior onde algum concorrente, que já havia tido problemas para atender o mesmo cliente, garantia que as atualizações entravam no ar no dia seguinte.

Claro que meu contrato também previa isso. Explicar ao cliente que inserção de material não é a mesma coisa que atualização foi por demais cansativo e optar por parar tudo e tentar fazer o mais rápido possível me pareceu mais simples do que convencê-lo a esperar no mínimo mais uma semana, e me permitr fazer um trabalho com as devidas revisões, com o devido cuidado e atenção.

Lá estava eu. Tenso. Passava pelo menos dez minutos do horário de nossa reunião. Eu estava com um pouco de olheiras ainda, e tinha quase certeza que havia vestido-me de forma a não somente não me preocupar com a cor das meias, como quase que absolutamente certo tendo posto uma meia de cada cor. Faltava-me, a esta altura, coragem para verificar e bom humor para achar divertido, caso fosse verdade.

Meia hora depois do horário combinado, o cliente chegava na empresa. Passou pela recepção me cumprimentando friamente, e pediu-me pra esperar. Mais quinze minutos lendo a revista Veja de três semanas atrás e então a secretária autorizou minha entrada.

Estávamos agora um diante do outro. Ele parecia agitado, querendo ver logo o que estava pronto e já perguntando ansiosamente quanto tempo demoraria pra entrar no ar de verdade (até aquele momento, estava publicado em endereço de teste), sem antes ver o que eu havia feito.

Eu expliquei que, se tudo desse certo, no mesmo dia poderia estar no ar, caso não houvesse nenhuma alteração. Mas que contratualmente eu pedia ao menos dois dias, por questões de eventuais instabilidades com o provedor. A palavra "contratualmente" pareceu ter soado mal, e ele logo passou de agitado para carrancudo.

Ditei-lhe o endereço do site para que ele, de seu laptop, pudesse visitá-lo. O laptop não estava conectado na internet. Para convencê-lo, eu pedi a ele que entrasse na página do UOL. Entrou a do cache. Então eu dei um endereço qualquer pra ele. Não entrou. Ele voltou a ficar agitado. Ligou pra secretária, perguntando se alguém do CPD da empresa estava lá (não havia CPD na empresa, e somente um profissional que entendia um pouco sobre ligar
máquinas em rede, mas que na verdade tinha uma função administrativa). Não havia chegado ainda. Eu então mostrei-lhe o CD e pedi para que visse a partir dali, que era a mesma coisa.

Olhou meio desconfiado, mas acabou aceitando.

Como o CD com um site web não abria via autorun, eu precisei "pilotar" o equipamento até deixar a página dele na tela. Foi quando percebi que havia algum problema na calibração da tela do laptop, pois estava tudo um tanto esverdeado (somente agora eu estava vendo-o de frente, onde podia-se distingüir melhor o que tem na tela – diferente da visão semi-lateral onde vê-se mais brilho difuso do que qualquer outra coisa).

O cliente comentou que era sempre assim e que ele já estava acostumado mesmo. Bem, tudo bem. O site estava na frente dele.

Seu olhar curioso me deu a incômoda sensação de que ele não tinha visto o layout que aprovou semanas atrás por telefone. Suas perguntas sobre "Por quê o menu está aqui? E este tipo de letra? Mas, e essa cor de fundo?" foram me causando um profundo pânico. Eu respondi a todas sempre citando, durante a explicação, que o objetivo das decisões tomadas eram em funções de determinadas questões "conforme o texto explicativo que acompanhou o primeiro layout". Este trecho de minhas explicações ele parecia ignorar.

Até que pegou o telefone e convocou, através da secretária, uma mini-multidão de profissionais. Desde o tal funcionário administrativo que sabia ligar máquinas em rede até o diretor comercial e o representante de vendas. Juntaram-se umas seis pessoas na sala, além de mim e do dono. E então pediram um café para todos (eu preferi água, pois meu estômago não estava muito bem).

Vários dos comentários que surgiram em torno do site que era visto meio esverdeado na tela era sobre a frustração da expectativa de alguns dos funcionários, que achavam que o site deveria parecer mais com o do concorrente (um deles tentou acessar o site do concorrente para me mostrar – até ser avisado que o laptop estava fora da rede e desistir – embora eu tenha dito que havia visto os sites dos principais concorrentes, que me foram passado durante o briefing – e fui devidamente ignorado, afinal, minha proposta não estava parecendo com a do concorrente, obviamente).

Eu suspirava fundo (discretamente) a cada comentário de cada um dos profissionais que pareciam estar vendo o site pela primeira vez, embora o layout original (que não mostrava as fotos nem os textos, exceto uns "Nonono" e imagens "tapa-buraco") estivesse disponível para visita há duas semanas. Parei de argumentar e resolvi deixar todos falar, apenas anotando as observações que achava pertinente (poucas, na verdade).

Quando o café foi servido, dois dos funcionários discutiam sobre o fato de que um preferia azul o outro preferia laranja. Nenhum dos dois parecia disposto a compreender que não somente não havia azul ou laranja na identidade visual da empresa, como também não remetiam a soluções eficientes dentro da proposta do site. Eu também, a esta altura, não estava disposto a explicar. Apanhei minha água, agradeci a gentil senhora que me serviu e foi então que meu cliente a chamou:

— Dá uma olhada nisso aqui.

A gentil senhora, cujo nome eu não me lembro, parecia ter a mesma intimidade com computadores que um rinoceronte teria com vasos de porcelana. Ela não fazia questão de esconder o desconforto em lidar com os equipamentos, mesmo que fosse só para dar uma olhadinha. Solícita, viu na tela e comentou:

— Bonito, né?

— O que a senhora achou da cor de fundo?

— Amarelo. Eu gosto de amarelo. Parece até a cor da parede do "hall" de entrada. Mas tá meio esverdeado aí, não tá não?

Alguém dos funcionários explicou que era um problema do monitor do laptop. Ela então disse:

— Ah, tá. Bonito. Parabéns, viu?

Quando ela disse isso olhando pra mim, senti vontade de abraçá-la. Ela não sabia nada de internet, de design, de projetos direcionados, de briefing. Mas soube ao menos ser simpática e valorizar um trabalho que, mesmo não sabendo o que envolvia, identificava como algo que deve ter sido dispendioso. Ou somente percebeu o meu desânimo, e numa atitude maternal, tentou fazer-me sentir melhor. Conseguiu. Eu apenas agradeci, meio sem graça:

— Obrigado...

Ela recolheu as xícaras. Meu copo ficou. Saiu da sala. Os outros continuaram na discussão, enquanto eu apenas pensava, com meus botões, qual teria sido a intenção do cliente em pedir a opinião dos subalternos. Estaria ele inseguro com o resultado final? Ou ele estava incomodado com minhas contra-argumentações as observações que ele fazia e resolveu chamar "reforço"? Quando os subalternos começaram a perguntar se era possível eu montar outras opções para escolha, senti-me acuado.

O contrato, assinado por ambas as partes há quase um mês atrás, previa que qualquer alteração no layout após a aprovação deste seria cobrada novamente. Meditei um pouco sobre a eficiência de citar essa cláusula contratual naquele momento, onde o cliente já havia deixado bem claro que, por ele, rasgava o contrato e me obrigaria a fazer o que ele estava mandando sob o risco de não me pagar. Claro que isso não foi dito com todas as palavras, apenas entendido subliminarmente.

Propus então um meio-termo:

— O que acha de publicar o site hoje, do jeito que está, e vocês definirem quais alterações querem fazer, para que eu pense em um novo prazo?

Tive o cuidado de não citar novos valores. Ainda não havia recebido nada e cada vez mais o risco de não receber nada mesmo pairava sobre minha mente cansada pelas noites mal dormidas que antecederam aquele episódio. O cliente pensou um pouco e resolveu concordar.

— Então você coloca no ar hoje?

Suspirei fundo mais uma vez:

— Até o final do dia.

— Então tá. Mais para o final da semana marcamos outra reunião então.

Ótimo. Ganharia uma semana pra tentar não pensar no assunto. Os demais funcionários começaram a dispersar. Eu levantei-me, mas não saí da sala. Então o cliente tocou no meu braço e disse:

— Eu te ligo.

Foi quando eu comentei, um tanto constrangido:

— Ãh... precisamos acertar o pagamento.

Ele parou e fitou-me.

— Não era somente após a aprovação?

Eu então retruquei:

— Você aprovou há duas semanas atrás. Ficou acertado que eu receberia a primeira parte quando viesse pra cá de novo.

Ele parou diante de mim, resmungou algo que eu não entendi e então disse:

— Espere um pouco.

Voltou ao telefone e pediu para a secretária ligar pra moça do financeiro. Eu teria achado graça (ele estava na porta diante dela, e ao invés de falar pessoalmente voltou ao telefone, do outro lado de sua sala). Não achei quando a secretária disse que ela não estava. Ele então voltou-se pra mim:

— Faz o seguinte. Deixa aí o número da sua conta e eu te faço o depósito.

Suspirei novamente, desta vez sem tentar disfarçar. Puxei uma folha do meu bloco de anotações, coloquei os dados bancários e o valor. Ele ainda perguntou que banco era e, diante de minha resposta, ensaiou alguma zombaria, do tipo: "puxa... justo esse banco horrível".

Deixei o papel com a secretária e saí, dizendo que esperava a ligação dele no final da semana. Aliás, eu mesmo precisei ligar no final da semana, porque o depósito ainda não havia sido feito. Isso que era ainda a primeira parcela, enquanto eu esperava, até lá, já ter recebido tudo.

No final das contas, conseguimos chegar num meio termo onde meu prejuízo não foi tão grande. O site foi pro ar (depois de seis meses foi trocado por outro, feito por outro profissional que trocou o amarelo de fundo pelo laranja). Mas eu recebi corretamente, com algum atraso, mas recebi.

O site não existe mais, exceto em algum backup esquecido. A empresa eu não sei, perdi o contato. Muito tempo depois é que fui saber que ganhei o apelido de "meião", porque eu estava, realmente, com uma meia de cada cor naquele dia, e nenhuma delas combinava com o sapato.

Aprendi algo com todo o episódio.

Primeiro, que a maioria dos clientes não vai entender exatamente a proposta do seu site até vê-lo completo, com seu próprio conteúdo. Segundo, que o contrato só é lido superficialmente. Terceiro, que reuniões com clientes acontecendo após uma seqüência de noites mal dormidas me deixam suficientemente anestesiado pra não comprar brigas desnecessárias.

Rafael B. Dourado

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