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   Ilustração 

Papel, cola e Photoshop

Breve histórico de um ilustrador

Daniel Bueno
Abril 2004


Ilustração sobre a desorientação dos órgãos responsáveis pela cultura. A face do livro, ao mesmo tempo em que se abre, se subdivide em duas e aponta para lados opostos, evidenciando a falta de rumos da política cultural do governo. Os braços cruzados reforçam esta situação.




Em alusão às confusões do Ministério da Cultura, os nós da mangueira fazem a água jorrar em círculos, sem atingir sua meta. O tratamento gráfico pesquisa novas texturas e cria um fundo com construção mais solta e caótica. Os elementos pictóricos da colagem não trazem símbolos agregados que possam interferir substancialmente na metáfora principal. Continente Multicultural, 2004.




Abordagem "gráfica" que acompanha texto crítico à Rede Globo. O olho circular do personagem reforça a polaridade com o elemento – também circular – que compõe o logo da emissora, e confere maior unidade à solução. Folha de São Paulo, 2003.

 

Minha prática profissional como ilustrador é recente, iniciada há pouco mais de três anos na revista Caros Amigos. O período de trabalho para a revista foi importante para o desenvolvimento inicial, onde experimentações contribuíram, aos poucos, para a definição de alguns caminhos.

Comecei misturando traço solto e colagem. De modo geral, as figuras principais eram resolvidas a traço, e o fundo era composto por recortes de jornal e revistas. O desenho era feito de modo rápido e agressivo, com caneta preta, e tinha uma linguagem derivada da cultura dos quadrinhos alternativos. No entanto, optei em determinado momento por soluções menos expansivas e mais sutis, apresentando as figuras principais com contornos discretos. Para tanto, passei a criar os elementos mais importantes com colagem também – eliminando o traço – e apresentando estes em um desenho geométrico, de contornos retilíneos, feitos essencialmente de tinta acrílica e alguns detalhes de recortes de revistas. Como apreciei o recurso e houve receptividade à solução, comecei a aplicá-la com mais freqüência, o que foi importante para o aprimoramento da linguagem. Desde então passei a criar imagens com formas simples, geométricas, e uso de texturas.

Referências

Em meu trabalho final de graduação na FAU-USP, desenvolvido em 2001 sob orientação do professor Silvio Dworecki, resolvi trabalhar com imagens extremamente simples – figuras geométricas pretas de nanquim sobre papel branco – para exercitar os fundamentos básicos do desenho. A opção pelo estudo de soluções de grande simplicidade foi decorrência de uma análise crítica de minhas ilustrações, uma vez que estas vinham apresentando alguns problemas de composição, excesso de alegorias, falta de clareza quanto ao foco e figuras principais. Eu vinha me preocupando em "explicar" demais o texto das matérias, comprometendo a força poética e cognitiva da imagem com uma grande quantidade de alegorias espalhadas, correspondentes a um amontoado de idéias e mensagens sem um adequado trabalho de síntese. Julguei ser importante partir do mais simples para me concentrar em alguns aspectos fundamentais de desenho – como um recomeço. Neste período foi importante ter me voltado para o trabalho de referências como Saul Steinberg e Folon.

Steinberg faz desenhos com abordagem "gráfica", onde cada linha e elemento gráfico passa a ter importância fundamental no significado do desenho, de modo a ir além do descritivo e se desdobrar em novas significações. Neste sentido, linhas de papel quadriculado podem se transformar em prédios modernos, com o auxílio de gestos mínimos e sutis sugestões acrescentadas ao desenho, como pára-raios situados no topo do quadriculado. No caso, a beleza de um único gesto serve para levantar questões sobre os prédios modernistas que vinham sendo construídos na época. Já Folon tem um trabalho com uso refinado de alegorias, onde o tratamento gráfico e o simbólico estão integrados em harmonia.

A obra de Folon mostra que a utilização de recursos como composição simples, definição clara do elemento principal, e uso restrito e bem definido de alegorias, não compromete as potencialidades poéticas da imagem, mas pelo contrário, se apóia na simplicidade para abrir espaço para um campo aberto de leituras. Com o tempo, outros nomes foram se incorporando ao meu quadro de influências com abordagens diversas, dos cartazistas Cassandre, Savignac, Leupin, a artistas como George Grosz. É importante lembrar que estas referências não dizem respeito apenas ao estilo, mas ao modo de trabalhar idéias graficamente.

Além das referências mais importantes, de modo geral bastante modernas e tradicionais, não deixei de sempre observar trabalhos da ilustração americana atual, presente em anuários como o American Illustrators; de quadrinistas alternativos do mundo todo, como os publicados por editoras, revistas e grupos como Fantagraphics, Drawn & Quarterly, Strapazin e L´Association; e do que vem sendo feito em outras áreas como design, artes plásticas e animação, sejam contemporâneos ou tradicionais.

Nas redações

Depois de um período criando ilustrações para a Caros Amigos e Folha, fiz o Curso Abril e trabalhei como diagramador na revista Exame, o que foi uma experiência importante para compreender melhor todo o processo de realização de uma revista e o papel da ilustração neste contexto. O trabalho diário com design contribuiu para o aprimoramento de noções de aplicação da ilustração em uma página, e de possíveis relações entre a imagem, os espaços vazios, o título da matéria, a mancha de texto. Na busca por idéias para ilustração, e no dia-a-dia nas redações folheando os catálogos de imagens para estudar possíveis soluções, acabei tendo uma melhor compreensão de quais são as fórmulas fáceis, e para onde caminham as abordagens menos redundantes. Ao observar muitas revistas publicadas no Brasil e no mundo, fiquei com a impressão de que os catálogos de bancos de imagem, apesar de sua praticidade, ajudam a perpetuar um modo de entender a ilustração que tende para o clichê e para a repetição de soluções. Em parte porque se acredita, erroneamente, que a boa ilustração deva sempre "explicar" a matéria, e neste sentido o que muitas vezes se exige dela é algo demasiadamente próximo do literal, com alusões excessivamente diretas ao assunto. Sendo assim, o campo de possibilidades de solução fica mais restrito, e os resultados acabam apelando invariavelmente aos já manjados apertos de mãos, lanterninhas, caminhos com flechas, etc. Como estes catálogos apostam em soluções para tal contexto de uso da imagem, fica evidente o investimento nos recursos gráficos mais comuns, com resultados gráficos bem distantes dos trabalhos de ilustradores como Rubem Grilo e Trimano, dentre outros.

             
             

Ilustração sobre o E-Procurement, um sistema eletrônico de compras eficiente e ágil. A imagem evidencia o controle e acesso que a figura principal tem sobre um único corpo – uma árvore –, de onde coleta o que lhe interessa a partir da variedade de opções. Não foram utilizados elementos do universo eletrônico e corporativo. Revista Info Corporate, 2003.

     

Nesta ilustração foi utilizado recurso simbólico fantasioso para sugerir problemas de download de programas. Macmania, 2003.

             
             


Fragmento da história em quadrinhos, "Onde Enfiei o Glauber?", publicada na revista Ragú, em 2002. Foi exposta na mostra espanhola Consecuencias, e participou do anuário da Society of Illustrators de 2004.




Recursos com maior dinamismo e fantasia foram aplicados para comentar o ato criativo e o egocentrismo. Revista Ragú, 2003.


 

Os bonequinhos de papel

Com a sucessão de trabalhos para diversas publicações do meio editorial, como Folha de São Paulo, revistas da Editora Abril, dentre outras, fui aos poucos elaborando um processo de criação próprio, baseado essencialmente na colagem manual e tratamento digital.
Inicialmente, dedico um bom tempo – quando possível – à idéia e concepção da imagem, fazendo vários rascunhos. Uma vez escolhida a idéia, desenho os contornos de todas as figuras a lápis, em papel sulfite, e transponho-os para papel duro, de aquarela ou rugoso. Eles são posteriormente recortados, virando peças soltas, "bonequinhos de papel". Sobre a camada dos bonequinhos aplico recortes de jornal e revista, camadas diversas de papel, e tinta acrílica. Se em meus primeiros trabalhos as pinceladas eram feitas com certa violência, gerando espessas camadas de tinta que se configuravam em texturas de aspecto rústico, posteriormente estas começaram a ser trabalhadas com mais cuidado, com maior atenção à volumetria, ao claro/escuro, a gradações de cor e variações de tonalidade. Com o tempo, também, a disposição das camadas de pedaços de papel passou a ser mais calculada, e a quantidade de detalhes aumentou. O desenho passou a ter contornos com geometria mais solta e variada – mas não menos calculada – à medida que a quantidade de influências e o interesse por trabalhos de novos autores aumentavam.

Uma vez prontas as peças, scaneio-as e desenvolvo as imagens no Photoshop, trabalhando as cores, contrastes, sobreposição de texturas, composição, proporções. É comum a mudança total de cores no Photoshop. É possível também tirar proveito da praticidade dos recursos digitais, e refazer e transformar os elementos já scaneados. Quando uma situação permite ou sugere outras soluções, posso também fazer trabalhos vetoriais e com outras técnicas, aproveitando a oportunidade para conduzir a linguagem a novos caminhos.

O uso da imagem

Trabalho a idéia da ilustração a partir do assunto abordado, estudando a relação entre imagem e texto. Um de meus interesses na elaboração da idéia de uma ilustração é procurar conferir a ela uma certa autonomia e deslocamento em relação à matéria que a acompanha. É um modo de evitar a ilustração que é mera explicação descritiva e repetitiva do assunto, de caráter superficial e decorativo. Para tanto, procuro estabelecer uma conexão com o conteúdo da matéria – por meio de metáforas, alegorias, analogias e sutilezas gráficas – que seja aberta o suficiente para que a imagem possa ter significado e despertar interesse mesmo quando vista isoladamente. Isso permite uma maior riqueza de leituras, confere sobrevida à imagem e dá margem a novas possibilidades de criação.

Acredito ser do "casamento" entre as necessidades do cliente e a visão do autor que surgem as melhores condições para a renovação da linguagem. O cliente deve, em tese, escolher determinado ilustrador a partir de suas necessidades, levando em consideração não apenas o seu "estilo" mas também o modo de pensar graficamente. A capacidade do ilustrador de conceber imagens de modo reflexivo e crítico não deve ser deixada de lado a serviço de um trabalho meramente decorativo, sujeito a idéias previamente impostas. Isto não significa, por parte do ilustrador, ser totalmente inflexível e ter um estilo único e imutável, mas ter parâmetros, preferências e posturas pessoais construídas a partir da experiência, da observação e pesquisa, do acerto e erro, de modo a desenvolver um campo de novas possibilidades, que podem caminhar e se renovar permanentemente.

Vejo este mérito no trabalho dos bons ilustradores autorais, que por selecionarem suas preferências, e trabalhá-las durante anos, acabam por atingir resultados originais com maturidade e consistência. Ao contrário, posturas excessivamente pragmáticas, que privilegiam cegamente a visão do cliente sem contraposição a qualquer crítica pessoal, acabam por gerar cópias de ocasião, onde referências – muitas vezes de trabalhos autorais – são decalcadas para outros contextos de modo pouco criterioso, banalizando a imagem.

 

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Daniel Bueno (1974) é formado na FAU-USP e atua como designer gráfico e ilustrador. Vencedor do Salão Internacional de Desenho para a Imprensa de Porto Alegre na categoria ilustração editorial (2003), expôs recentemente na Espanha – Madrid e Barcelona –, e na Society of Illustrators de Nova York. É membro da SIB – Sociedade dos Ilustradores do Brasil – e faz mestrado na FAU-USP em História da Arte e Arquitetura.
 

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