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   ARTIGO 

Design para todos — o design como interface cultural, social e econômica

Daniel Raposo Martins
Fevereiro 2006

"O design é, por definição, uma atividade multidisciplinar em que o designer recorre a especialistas e conhecimentos de outras áreas, desta forma possibilitando resolver problemas de forma mais consistente."

 

Encarar o design como algo fútil e apenas conferido ao campo da estética é provavelmente um dos grandes problemas da disciplina, mas também da sua ainda fraca utilização em benefício da sociedade.

Freqüentemente, indivíduos de diversos campos de atividade inclusive os profissionais da área, confundem design com styling ou mesmo com Kitsch [1›]. Criam-se objetos inúteis que apenas visam estimular as vendas ou aumentar o ego do designer que confere o seu estilo a objetos que serão usados por terceiros.

Provavelmente a falta de um sentimento de classe ou do associativismo em redor de um projeto forte em benefício dos designers e da sociedade, é razão para a falta da regulamentação da profissão, bem como da indefinição de conceitos e de uma confusão que assombra a atividade. Na área do design tem reinado a indefinição e a utilização do design, sobretudo como instrumento de vendas, esquecendo-se, desta forma, a própria filosofia da disciplina que tem movido os designers ao longo dos tempos.

Um olhar atento sobre o habitat do ser-humano bastará para verificar a presença de milhares de objetos e espaços que necessitam ou têm a intervenção do design. Pense agora no impacto que cada um tem isoladamente no mundo no nível social, cultural e econômico. Assim se apresenta a reflexão que faz o subtítulo do tema “Design para todos”, o design como interface cultural, social e econômica.

O design como interface cultural

Como facilmente se entenderá, o designer é influenciado ao nível teórico, metodológico e representativo pelo mundo em que se insere, porém é também influenciador do seu contexto quando age como elemento pró-ativo ao nível cultural, social e econômico, devolvendo representações manipuladas do mundo.

     
 
Figura 1
Reforçar a mensagem.
Fonte: Catalysts (ExperiementaDesign, Lisboa, 2005)
     

A simples seleção dos elementos comunicacionais a integrarem um cartaz, vão ditar a sua eficácia em termos de transmissão da mensagem, mas ainda podem acrescentar valor ou encerrar outros significados secundários (figura 1). Por exemplo, a seleção de um modelo feminino ou masculino, a pose corporal, a faixa etária, o vestuário, o cenário de fundo, o estilo, a cor e a iluminação, vão criar diferentes sensações isoladas e de conjunto.

     
 
Figura 2
Cartaz de Peter Moser (Suíça, 2001), que em vez de uma top model usa uma modelo “normal”.
Fonte: Catalysts (2005)
     

Assim, se o papel do design é otimizar a eficácia do objeto, pode também criar novos significados e influenciar, positivamente ou não, o comportamento social (figura 2). A freqüente seleção de modelos fotográficos para um cartaz, com base em critérios canônicos assexuados pode criar efeitos de imitação, dando origem a doenças como a anorexia ou anemia.

 

Figura 3
Pictogramas Otl Aicher, Jogos Olímpicos de Munique, 1972.
Fonte: Zimmermann (1998, p. 63)
 
 

 

 

   

Como refere Norberto Chaves (2001, p. 83) a propósito do papel do designer como agente cultural “(...) o designer gráfico é precisamente o elemento chave, aquele cuja idoneidade não é a de configurar a mensagem ‘à sua maneira’ mas sim a de interpretar o especial ‘cruzamento de códigos’ do caso e de lhe dar uma solução equilibrada que permita satisfazer as expectativas e possibilidades de todos os demais atores para que a comunicação alcance o seu mais alto nível de eficácia”.

Como fica patente num conjunto de pictogramas, qualquer objeto de design deve facilitar a sua decodificação e uso, tornando-se acessível a uma sociedade (figura 3). A este propósito tem-se falado em design universal, embora essa seja uma visão idealista e utópica, pois se o objeto de design deve ser acessível à pluralidade dos utilizadores, na maioria dos casos deve adaptar-se e respeitar valores culturais e morais a uma escala quase personalizada (figuras 4 e 5).

     

Figura 4
Cartas para pessoas com visão fraca.
Fonte: Papanek (1995, p. 72)

 

   
Figura 5
Caixa de comprimidos e relógio digital com alarme para usar no pulso, com diferentes recipientes para cada medicamento.
Fonte: Papanek (1995, p. 73)

     
   

O design como interface social

Segundo Mijksenaar e Westendorp (2000), a vida contemporânea é um permanente teste à inteligência, na medida em que constantemente os indivíduos são confrontados com problemas para resolver, com diferentes níveis de dificuldade. Os mesmos objetos que são criados para resolver problemas detectados acabam por criar outros novos.

A solução passa pela capacidade dos objetos comunicarem sobre o seu uso (figura 6), e é este um dos objetivos do design, porém dada a complexidade dos objetos contemporâneos, isto nem sempre é suficiente, como referem Mijksenaar e Westendorp (2000) que “o meio não é a mensagem. Não o é se o produto se deve interpretar como o meio. Por isso necessitamos instruções adicionais”. Mas os manuais de instruções implicam tempo de aprendizagem e conhecimentos técnicos que muitas vezes são inacessíveis aos utilizadores, evidenciando a necessidade de simplificar o uso e com ele a vida das pessoas.

     
 
Figura 6
A embalagem não se presta a ambigüidades pela sua forma simples e evidente, bem como pelo reforço comunicacional que a infografia oferece.
Fonte: Mijksenaar (2000, p. 20)
     

Para agravar o problema de comunicação dos objetos, o quotidiano da sociedade contemporânea está repleto de poluição visual, sonora, de filas de trânsito ou de supermercados, que por sua vez implicam a interação com objetos muitas vezes estranhos à experiência humana. A simples utilização de um caixa electrónico, de um site de internet, de um computador ou de um despertador, implica níveis de dificuldade diferentes dependendo da capacidade, cultura, conhecimento e experiência. Embora todo o ser humano passe por várias fazes de incapacidade ao longo da vida, grande parte dos objetos do quotidiano excluem utilizadores descapacitados (por idade, cultura, fisicamente ou psicologicamente). Por exemplo, os teclados dos telefones, celulares, computadores e caixas eletrônicos são diferentes, implicando novas aprendizagens a cada uso e, portanto aumentando a dificuldade da vida quotidiana.

O design é um meio de garantir a facilidade de utilização, a utilidade, a qualidade, o conforto, a segurança e o respeito pelos valores da sociedade. Uma sociedade dita evoluída deveria respeitar os valores de cidadania, porém atualmente espera-se que sejam os estados a resolver os problemas que cabem aos cidadãos. Com alguma freqüência, as sociedades ditas do terceiro mundo ou de periferia, mostram que do pouco se pode fazer muito, reutilizando, reciclando, respeitando e valorizando o que a vida oferece (figura 7).

     
 
Figura 7
A escassez de material em países pobres obriga à reutilização. Na imagem, um homem prepara pneus velhos para o transporte de água.
Fonte: Papanek (1995, p. 33)
     

Os problemas ambientais têm alertado as pessoas para esses mesmos valores, porém as ditas sociedades desenvolvidas continuam a esconder o lixo e os problemas sociais debaixo do tapete.

Uma correta utilização do design pode melhorar substancialmente a qualidade de vida das pessoas a curto, médio e longo prazo. Otimizando a capacidade comunicativa dos objetos, melhorando a experiência dos mesmos e adequando-os à cultura e conhecimentos do destinatário, bem como respeitando os seus valores ou o mundo.

Como refere Victor Papanek (1995), a própria organização dos espaços e a proliferação de mensagens visuais que se tentam impor (figura 8), têm larga influência sobre a qualidade de vida das pessoas. Papanek (1995) refere que uma cidade sem um centro orgânico – constituído pelos desejos sociais básicos do homem: sociabilidade, religião, política e desenvolvimento artístico e intelectual – não é socialmente unida. Que desenvolver uma cidade em função do trânsito é um dos problemas urbanos contemporâneos, pois esquecem o núcleo social comum (figura 9).

     
 
Figura 8
Poluição visual. Estimula-se que, em média por dia, recebemos cerca de 3 mil impulsos publicitários.
Fonte: Heskett (1981, p. 83)
     

Figura 9
Refere que uma cidade sem um centro orgânico – constituído pelos desejos sociais básicos do homem: sociabilidade, religião, política e desenvolvimento artístico e intelectual – não é socialmente unida. Que desenvolver uma cidade em função do trânsito é um dos problemas urbanos contemporâneos, pois esquecem o núcleo social comum.
Fonte: Papanek (1995, p. 119)
 
   
 
   

As grandes vias originam grandes filas de trânsito e criam um efeito túnel e um estresse diário que impede as pessoas de desfrutar do universo humano, que pode ser amenizado criando zonas que possibilitem abrandar o ritmo ou desfrutar do habitat, através de pontos de passagem como rótulas com algum tipo de intervenção ou jardins.

O design pode significar uma melhoria da qualidade de vida ao melhorar os acessos e a experiência de uso dos mesmos, bem como ao adaptar os projetos urbanos aos costumes e cultura do utilizador. Esta é uma verdade ao nível do traçado dos espaços domésticos, de trabalho, de lazer ou de mobilidade, mas também ao nível da comunicação ou orientação, respeitando o mapa mental do utilizador (figuras 10 e 11).

     
 
Figura 10
A fachada do edifício e a sua arquitetura facilitam o reconhecimento e orientação, evitando a necessidade de sinalização com o mesmo efeito.
Fonte: Mijksenaar (2001, p. 9)
     
 
Figura 11
A simplificação das vias rodoviárias é desejável para facilitar a leitura, porém não se deve afastar do mapa mental do utilizador.
Fonte: Heskett (1981, p. 150)
     

O design como interface econômica

O design surge não apenas como uma mera forma neutra de materializar objetos, mas como forma de otimizá-lo estrategicamente em função do seu público e de reforçar a sua utilidade (figura 12). Possibilitando a interpretação conceitual dos valores corporativos, dos dados fornecidos pelo marketing e a realização de pesquisa sobre os códigos visuais dos concorrentes ou culturais do público-alvo.


Figura 12
Vários tipos de palitos. O último está preparado para que, depois do uso, se parta uma extremidade de modo a sobrepor-lhe a que esteve em contato com a boca.
Fonte: Heskett (1981, p. 42)
 

 

 

   

A definição da estratégia nasce da interseção de diferentes interesses e condicionantes, tendo em conta as capacidades da empresa e a sua identidade. A agregação dos valores corporativos ao design e à sua conduta faz com que deixem de ser meras formas vazias, que por sua vez possibilitam que o público se aproprie dos significados.

Contribuir para a competitividade das empresas não traz apenas benefícios econômicos, mas também sociais, ao contribuir para o aumento de postos de trabalho, da melhoria das condições de trabalho e da qualidade dos produtos ou serviços (figuras 13, 14 e 15). Esse contributo é fundamental para a afirmação do design na sociedade, bem como o de melhorar o universo urbana em colaboração com os municípios. Porém, o designer não é um mercenário ao serviço das empresas e disposto a fazer qualquer coisa, mas antes um estrategista dotado de consciência social.

     
 
Figura 13
Fogão a energia solar desenvolvido com o apoio da Unesco para a Índia e Paquistão.
Fonte: Papanek (1995, p. 47)
     

Figura 14
Pisa-livros (utensílio para abrir e sustentar as páginas de um livro) feito com restos de couro.
Fonte: Papanek (1995, p. 65)
 
   
 
 
Figura 15
Projeto de cabos de talheres a partir de aparas de couro.
Fonte: Papanek (1995, p.65)
     

Reflexão final

A regulamentação da profissão e um forte sentimento de classe por parte dos designers, são as formas de garantir o correto desempenho da atividade e de criar condições para que estes tenham a oportunidade de desempenhar as suas funções sem concorrência desleal e com as justas circunstâncias. Esta questão não trata de um mero interesse corporativo, mas de garantir que os designers tenham a oportunidade de servir bem a sociedade.

O design é, por definição, uma atividade multidisciplinar em que o designer recorre a especialistas e conhecimentos de outras áreas, desta forma possibilitando resolver problemas de forma mais consistente.


Nota

  1. Também é necessário não confundir a disciplina com a técnica, as ferramentas ou com a metodologia. [‹ VOLTAR]

Bibliografia

MIJKSENAAR, Paul, WESTENDORP, Piet. Abrir aqui – el arte del diseño de instruciones, Alemanha: Könemann, 2000. ISBN: 3-8290-5433-5

MIJKSENAAR, Paul, Diseño de la información, México: Editorial Gustavo Gili. 2001 ISBN: 968-887-389

HESKETT, John, El diseño el la vida cotidiana, Barcelona: Editorial Gustavo Gili, 2005. ISBN: 84-252-1981-7

PAPANEK, Victor, Arquitectura e Design, Lisboa: Edições 70, 1995. ISBN: 972-44-0968-6

ZIMMERMANN, Yves, Del diseño, Barcelona: Editorial Gustavo Gili, 1998. ISBN: 84-252-1780-6

CHAVES, Norberto, El oficio de diseñar – Propuestas a la conciencia crítica de los que comienzan, Barcelona: Editorial Gustavo Gili, 2001. ISBN: 84-252-1840-3

 

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Daniel Raposo Martins (1977) é designer de comunicação e desenvolve atividade profissional na área da Identidade Corporativa em Portugal. Freqüenta cursos de design desde 1993, destacando-se a sua Licenciatura em Design de Comunicação e Técnicas Gráficas, Variante Design Gráfico e Publicidade e a freqüência do mestrado em Design, Materiais e Gestão de Produto, aguardando defesa da sua tese com o título "Gestão de Identidade Corporativa: do sigo ao código". Reside na cidade de Castelo Branco onde é professor na Escola Superior de Artes Aplicadas de Castelo Branco, mas foi o estado caótico da profissão e a luta por um ideal que procura o bem comum dos designers, que o levaram a ser membro fundador e atual secretário de Direção da Associação Nacional de Designers, Portugal.
   
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Este artigo é uma edição para a designGráfico, desenvolvida em conjunto com o autor, que também terá seu trabalho publicado na revista espanhola Bla blArt.
 

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