Grupo dos apreciadores das artes
aplicadas ao entretenimento
eletrÔnico e interativo.

InÍcio | Artigos | FILOSOFIA

Possíveis relações entre a arte e os jogos eletrônicos

Uma introdução ao conceito de estética aplicado as possibilidades do jogar digital

 

Por Fabrizio Augusto Poltronieri

 

Resumo

O objetivo deste trabalho é relacionar o conceito de estética – entendido aqui como sendo a filosofia da arte – com a produção e fruição visual dos jogos disponíveis para os videogames atuais. Parte-se da identificação da necessidade de desvincular o termo estética do conceito, ou dos padrões vigentes, de belo em prol de uma atitude e produção mais reflexiva e crítica, que levem em conta a historicidade dos termos aplicados.

Keywords: Estética, arte, jogos digitais

Contato do autor: fap@readymade.com.br

1. Introdução

De todas as classificações taxionômicas encontradas no conjunto dos jogos digitais, uma especificamente chama a atenção por parecer deslocada – e até mesmo marginalizada – em meio a uma produção que encontra-se, ou procura estar, cada vez mais próxima das grandes indústrias modernas do entretenimento, principalmente da cinematográfica. Tal categoria atende pelo simbólico, mas também enigmático, nome de game art. Esta denominação revela-se problemática principalmente quando colocamos em pauta algumas questões conceituais e epistemológicas tratadas no longo percurso trilhado pela estética, ou filosofia da arte.

Desde já é importante salientar que nosso interesse pelos aspectos filosóficos envolvidos nas questões a serem enfrentadas dá-se pelo fato de que

a principal tarefa da filosofia seria estabelecer como podemos avaliar determinadas pretensões ao conhecimento; o sucesso nessa tarefa permite com que a filosofia se estabeleça como uma espécie de árbitro, de legislador de uma cultura, de uma sociedade, consistindo basicamente nisso sua função crítica. A filosofia adquire então uma função de análise crítica dos fundamentos, do discurso legitimador, uma vez que a cultura é precisamente o conjunto dessas pretensões ao conhecimento [Marcondes 2008:50].

Tratando mais especificamente dos jogos digitais,é notório o esforço no desenvolvimento de teorias e tecnologias que possibilitam, ou pretendem, jogar certa luz conceitual e pragmática neste universo, em especial com relação a seus aspectos narrativos – campo que vem sendo impulsionado centralmente por hibridizações de teorias advindas das áreas da literatura, do teatro e do cinema –, e tecnológicos – onde as denominadas ciências exatas e da informática almejam produzir algoritmos mais eficientes para a geração e análise de condutas de personagens controladas pelo aparato computacional (NPCs†) e métodos para otimizar os ciclos do processamento e das renderizações gráficas, entre outros aspectos não menos relevantes.

Enquanto tais segmentos de pesquisa avançam na tentativa de conceder legibilidade aos intrincados e contemporâneos fenômenos que são representados pelos jogos digitais, as pesquisas sobre o valor estético destes ainda encontra-se no terreno do senso comum. Até mesmo nos circuitos acadêmicos a discussão estética sobre os jogos digitais é conduzida, muitas vezes, com uma superficialidade que surpreende e incomoda. Os aspectos estéticos deste tipo de estrutura de linguagem, absolutamente híbrida, acabam sendo reduzidos ao juízo individual de gosto – por exemplo, se os gráficos que dão forma ao jogo digital são ou não “belos” – ou ao crivo técnico – se as imagens são tecnicamente bem produzidas, modeladas, renderizadas e animadas.

Outro fator complicador é a constante atribuição do adjetivo “experimental” a esta categoria de jogos digitais, como se o rótulo “arte” valide ou justifique qualquer coisa sem um exame detalhado de sua estrutura, exame este que deve partir de algumas categorias estéticas e filosóficas. Esta deformação conceitual é perniciosa por permitir que se abrigue sob o cunho de “estético” ou “artístico” qualquer proposta que simplesmente não se encaixe em outra categoria ou que tenha sido simplesmente mal compreendida.

Distorção também frequente é a descompromissada associação de um grande valor estético ao que se ocupa em recriar, na forma de simulacro, o mundo real, objetual, representado pela natureza. A intenção de muitos jogos digitais produzidos nos últimos anos é retornar ao ideal renascentista expresso pelo termo “janela para o mundo”, na medida em que cada vez mais indiferencia-se o duplo computacional, ficcional, de sua referência real. Este tipo de discurso, embora distinto dos acima apresentados, também costuma conferir um caráter “artístico” ou “estético” a determinados jogos.

Torna-se possível, mesmo nesta breve explanação, perceber o constrangimento conceitual que expressa-se na falta de clareza argumentativa e teórica impressa à nascente, mas já poderosa, linguagem dos jogos digitais.

A respeito da busca incansável pela idealização de sistemas com vistas a reprodução “perfeita” da realidade – o que chamamos de “janela para o mundo”, pois em um estágio técnico avançado não haveria diferença entre observar uma janela aberta para o mundo natural, uma paisagem pintada em um quadro ou uma imagem exibida em um monitor de computador – Leonardo da Vinci (1452–1519), o maior artista e pensador do alto renascimento, já atrelava o sentimento de belo à natureza, por esta conter “formas perfeitas”. Cabia ao artista do renascimento revelar tal beleza em suas obras. A arte, nesta visão, sujeita-se ao mundo natural, sendo deste mimese – cópia – e transplante.

Até o renascimento, a pintura e a escultura ocupavam um plano menor na hierarquia das artes, situação herdada diretamente da cultura grega, principalmente a que se estabeleceu após Platão (428 a.C.–348 a.C.). Da Vinci reinvindica para estas maneiras de expressão a condição de atividades não meramente mecânicas mas sim intelectuais, posição até então somente atribuida à poesia e à música. Para Da Vinci a pintura era a mais elevada síntese de conhecimentos, constituindo em si mesma uma filosofia [Argan 2008].

No mundo concebido pelos ideais do renascimento a beleza encontrada na arte manifestava-se a partir de sua inteira cumplicidade com o mundo real, com as perfeitas formas, cores, texturas e perspectivas naturais. É interessante, entretanto, perceber e apontar para o fato de que os elementos que tornam possível esta duplicação pertencem não ao mundo da natureza, mas sim ao terreno da linguagem, ao mundo humano. A tecnologia da perspectiva, por exemplo, é criada pela cultura – processo acumulativo, de cultivo da linguagem e, por decorrência, da civilização – para tentar dar conta, de maneira pictórica, do mundo real.

Entretanto, por ser linguagem já há um afastamento inexorável, que deve ser percebido conceitualmente, do real. A observação de que muitos dos jogos eletrônicos hoje produzidos – através das tecnologias de modelagem e simulação tridimensionais – tentam ser exatamente as “janelas para o mundo” renascentistas revela, entre algumas questões, a submissão permanente de nossa cultura visual – considerando tanto o ocidente quanto o oriente – a uma concepção cujo auge ocorreu há 500 anos. Claro que o processo cultural é um procedimento acumulativo, e não de simples descarte de momentos históricos, o que valida o uso contemporâneo de estruturas do pensamento concebidas em outras épocas. Porém, é notável a quase que completa impermeabilidade dos jogos digitais aos cortes epistemológicos criados, principalmente, pelos movimentos modernos e contemporâneos surgidos nos campos da arte e do design e que pontuaram todo o século XX.

A tarefa de pensar filosoficamente os jogos digitais a partir de conceitos provenientes da estética é longo, mas necessário. O presente texto, claro, não tem a intenção de esgotar todas as possibilidades envolvidas, mas sim de apontar alguns caminhos para futuras teorias a respeito de uma estética relacionada a área.

2. Realidade, ficção, jogos e arte

Quando nos referimos ao mundo real, objetual, o fazemos no sentido de estabelecer uma distinção precisa entre realidade e ficção. Ora, parece-nos claro que, assim como a arte, os jogos digitais pertencem ao domínio da ficção por serem, nuclearmente, produtos complexos das linguagens humanas. Não são o real, e daí advém boa parte do grande poder de sedução por eles exercido.

As argumentações de que os processos narrativos que buscam dar aos jogadores a sensação de uma imersão completa no ambiente dos jogos digitais, transportando-os de forma eficiente e convincente para um universo “real”, criado pela aplicação computacional, não resistem à uma teoria consistente do real, como a formulada pelo filósofo medieval Duns Scot (1266–1308), que mais tarde foi incorporada ao sistema filosófico de Charles Sanders Peirce (1839–1914).

Real, para estes filósofos, é o que se recusa a realizar a vontade de um outro. Em outras palavras, o real é algo dotado de vontade própria, que oferece resistência. É, portanto, um alter e nossa experiência com o real é marcada pela constante necessidade de mediação entre nossas vontades individuais e os limites que o real – o outro – coloca. Como exemplo, podemos citar o tempo e as variações climáticas naturais. Quando chove, o desejo individual de que a chuva cesse em nada influi para que o sol volte a brilhar, pois o tempo é real, dotado de vontade própria, e a vontade de um outro em nada o abala. Esta é a característica mais marcante do real: ser dotado de alteridade, de vontade própria, ou seja, é coisa que “não depende do que dele pensamos, mas que permanece não afetado pelo que dele possamos pensar” [Ibri 1992:35]. O real, por ser sempre um outro, coisa que reage, é também sempre um objeto – algo que objeta –, ou seja, que diz não, que impede, ou coloca limites, ao exercício de nossa vontade. Moles [1981:25] define objeto, de uma forma clara, da seguinte maneira:

Etimologicamente objectum significa atirar contra, coisa existente fora de nós mesmos, coisa colocada adiante, com um caráter material: tudo o que se oferece à vista e afeta os sentidos (Larousse). Os filósofos utilizam o termo no sentido daquilo que é pensado e se opõe ao ser pensado ou sujeito. O termo objeto, portanto, constitui-se:

1. por um lado, no aspecto de resistência ao indivíduo;
2. de outro lado, no caráter material do objeto;
3. enfim, na ideia de permanência ligada a inércia.

Em alemão, Gegenstand exprime a mesma ideia: o que está colocado contra e cuja materialidade se opõe aos seres pensamento ou razão (objetivo, objetável etc).

Postas tais observações sobre o real, passamos agora a análise do que é ficção. Se o plano do real demonstra a total falibilidade de nosso desejo em impor determinações a outrem, o campo da ficção caracteriza-se pela liberdade irrestrita, pois livre é o que não tem sobre si outro que determine suas ações. A linguagem, em suas inúmeras facetas, traz essa possibilidade, já que um pintor pode dar forma, em uma tela, a um oceano amarelo; um escritor, em seu conto, pode fazer chover ou nevar, assim como um game designer, ou programador, pode moldar um universo inteiro com leis por ele concebidas. Nada determina a cor do oceano em uma pintura, o clima em um conto ou a estrutura da gravidade em um jogo digital a não ser a pulsão criativa de quem estrutura as linguagens empregadas nestes sistemas. Este terreno absolutamente livre é o da ficção, e a estética e a arte ocupam-se dele.

A beleza da arte, e o que justifica sua importância nuclear aqui, reside no fato dela ser uma fina rede que tenta capturar as mais inexpressivas ou passageiras qualidades que se apresentam a nós fenomenologicamente. A arte, responsável pela heterogeneidade que torna nossa experiência com o mundo tão rica, tem seu modo de ser pautado na criação de ficções, de estruturas que são justificadas apenas por si mesmas, não devendo satisfação a mais nada fora da trama criada por sua própria linguagem. Este é o jogo da arte e adentrarmos nele como jogadores é passo crucial a compreensão de como este modo de ser apresenta-se a nós.

O ambiente de um jogo digital, por mais que este pretenda ser uma simulação do real, sempre estará fadado à incompletude da linguagem e ao desejo do interator que, a qualquer momento, pode simplesmente desligar o console ou o computador e voltar-se a outra atividade. Como, no mundo real, desligar a chuva ou o sol?

Aristóteles (384–322 a.C.) já distinguia entre os seres naturais, originários de causas necessárias que independem de nossa vontade, e os produtos da arte, frutos de um conjunto de atividades práticas. Estes últimos são absolutamente dependentes do desejo humano para existirem. De acordo com a concepção aristotélica, a arte é artificial por definição, existindo para aprimorar o natural. A natureza possui um movimento próprio, independente, enquanto a arte necessita de algo que a informe, de um movimento exterior – fruto de um desejo – que introduza forma à matéria amorfa. Esta práxis é uma estrutura correlata à ficção, pois com as técnicas corretas impõem-se à matéria desinformada qualquer forma que corresponda ao pulso criador humano. A ação primordial da arte é um procedimento de transformação de dados brutos – naturais – em informação, processo que dá forma à matéria, tornando-a acessível ao mundo humano, ao mundo da cultura, visto que “as obras da cultura tem significado, são decodificáveis” [Flusser 1979:10].

Embora possua este inegável caráter contingencial, a arte é, paradoxalmente, uma necessidade humana inegável, que está por trás de todo o processo cultural. Nossa cultura está imersa na arte. Com esta afirmação, adentramos um território arenoso, cuja tentativa de apreensão simplesmente escapa por entre os nossos dedos, já que cultura é uma das palavras mais difíceis de serem definidas, não pela falta de definições, mas sim pelo excesso delas. Todas as áreas das ciências humanas sempre debruçaram-se sobre suas definições específicas para o termo. Portanto, para tornar este terreno mais navegável e delimitado, dentro de nosso interesse neste texto, vamos entender a cultura como sendo “produto da agricultura. É ela um 'colher' (colere) das coisas arrancadas da natureza” [Flusser 2007:23]. O homem, enquanto ser de cultura, empreende o processo civilizatório através do ato de arrancar – colher – as coisas da natureza e aproximá-las de seu mundo, marcado pela troca simbólica. A cultura constitui-se por processos que o homem criou – e continua criando – para tornar o mundo e seus fenômenos compreensíveis.

Diante destes apontamentos filosófico os jogos digitais, independente do estilo, estariam localizados no campo da arte, da pura ficção contingencial, tornando a classificação game art sem sentido, pois a práxis informadora artística está presente em todos os jogos digitais.

O real não é condição sine qua non para a estruturação da linguagem dos jogos digitais, sendo o universo amplo de possibilidades a serem articuladas, a partir de um universo contingente, o grande impulso para a criação de games. O real é independente da linguagem, não é ela quem o estrutura. O animal real denominado cavalo, por exemplo, já existia antes da generalização do uso das palavras que o designam nas línguas humanas. Já os mecanismos artísticos, assim como os observados nos jogos digitais, são decorrentes do uso formador da linguagem: estas estruturas não existem naturalmente. Observamos que a linguagem não determina o real, não podendo, por consequência lógica, dar forma a algo que não seja apenas ficção, como a arte ou os jogos digitais.

Entretanto, mesmo o olhar mais desavisado é capaz de perceber níveis de complexidade nos produtos criados pela linguagem, sendo a arte o terreno mais fértil e inquieto da linguagem por excelência. Do ponto de vista da produção e da fruição desta, algo é mais sofisticado não apenas se é produzido de maneira tecnicamente superior, mas sim se consegue causar um sentimento de assombro, ocasionado pela grandeza e magnitude da estrutura criada com relação as meras coisas, que não são capazes de causar o sentimento peculiar que a experiência da arte traz a tona, de maneira intensa e arrebatadora.

Este sentimento, identificado com a ideia de algo sublime, é construído conceitualmente por uma série de filósofos importantes para a compreensão do campo da estética, como Immanuel Kant (1724–1804) e Arthur Schopenhauer (1788–1860). Nos diz este último [2001] que a partir da contemplação – definida como a experiência de contato entre a consciência individual, subjetiva, e a ideia, que também é uma manifestação mental, contida na coisa artística – o sujeito desaparece, dilui-se em virtude do esplendor ao qual sua percepção é submetida, para em seguida ter seu espírito elevado pela experiência de intercâmbio que a arte, através do sublime, proporciona. Quando este fenômeno ocorre, estamos diante do produto do gênio, em seus níveis mais elevados [idem]. É precisamente neste ponto que a arte difere-se das outras formas de ficção menores.

Isto posto, podem os jogos digitais causarem tal sensação de espanto espontâneo? Tal sentimento de sublime? Ou estarão condenados apenas às proezas e aventuras do espírito técnico? Uma possível estética dos jogos digitais parece ser necessária para tratar adequadamente – filosoficamente – deste terreno.

Tendo em conta o caráter ameaçador e, por consequência, assombroso que as tecnologias computacionais trazem em seu cerne – pelo fato de serem incompreendidas em sua essência pela maioria dos seus usuários – Costa [1995] cunha o emblemático termo “sublime tecnológico”, baseado não somente nas características enigmáticas do hardware dos aparelhos, mas principalmente em seus produtos, “imagens sintéticas”, como o autor denomina as estruturas de linguagem criadas a partir do uso de dispositivos digitais. Para lançar certa luz a este terreno nos parecer ser essencial identificar o modo de ser da estética e quais são as principais problemáticas envolvidas neste campo.

3. Estética e realidade

A estética preenche o espaço de uma filosofia da arte, representando uma série de preocupações não só com o fazer artístico – mais especificamente ligado ao que Aristóteles chamou de poética –, mas também com os processos cognitivos, sociais, culturais e históricos que acompanham os fenômenos ligados a arte, cobrindo todo o amplo espectro desta atividade que define e situa o homem e seu entorno. Embora a palavra estética nem sempre tenha sido utilizada para identificar o campo de estudos contemporâneos a que esta se refere, a preocupação em dar legibilidade intelectual à vasta seara fenomênica criada pela arte está presente desde a mais remota antiguidade, embora sua constituição como ciência independente, com método próprio, seja recente [Bayer 1998].

Diante das colocações levantadas até este ponto, um questionamento é inevitável: por que, tendo como horizonte infinitas possibilidades livres permitidas pela não determinação do real, insiste-se no desenvolvimento maciço de jogos digitais que pretendem recriar o que já está estabelecido pelas leis do real? É uma questão complexa, com muitas variáveis e longe de ter uma resposta única, mas cujo esclarecimento atravessa, certamente, questões estéticas que tentaremos explorar.

A respeito da relação entre ficção, arte e realidade, Platão já apontava para o aspecto representativo da pintura e da escultura, evidenciando o caráter de mimese destas. Diante da beleza real vista na natureza, que foi copiada diretamente da perfeição encontrada nas essências imutáveis pela figura do Demiurgo [Nunes 2002:39], Platão desqualifica a pintura e a escultura como formas de expressão por estarem muito abaixo do real conhecimento que a natureza proporciona. Para ele, a atividade dos que pintam e esculpem é inconsistente e ilusória, sendo por isso supérflua. A imitação produzida pela linguagem da arte reproduz somente a aparência exterior do que é retratado, perdendo na representação o espírito animado que observamos na natureza. O filósofo já havia apontado – como uma das problemáticas centrais da arte – a necessidade de questionar a essência e validade da mimese quando comparada com o que é real. Questão filosófica e estética que até hoje permanece e da qual os jogos digitais são herdeiros.

Entretanto ao imitar, o pintor ou escultor não simplesmente reproduz o dado real, mas realiza uma operação de montagem sintática, típica forma estruturante da linguagem. O artista reordena partes do que encontra no mundo natural, transportando-as para o universo humano da cultura. Neste procedimento idealiza-se um modelo, um padrão de perfeição que a arte tende a buscar. A beleza da arte está não na simples cópia, mas na idealização de formas perfeitas a serem alcançadas.

Daí a arte ser o modo exemplar de formalização que a linguagem deve obstinadamente seguir. É o que Argan [2008] chama de “valor de exemplaridade”, ou seja, a capacidade observada na arte de produzir modelos para todas as outras atividades humanas. Conclui-se que a arte tem em si um valor operativo, cujo objeto é o mundo humano:

ser exemplar [para Argan] significava a capacidade de chegar a formalizações que servissem de modelo para as demais atividades. Ora, sendo assim tornava-se impossível concordar com uma concepção que compreendia a obra de arte como derivação de “uma exigência expressiva, de uma vontade de forma que decerto modo é imanente a toda uma época” [Naves 2008].

Em contraponto as concepções platônicas, Aristóteles acreditava que o ato de copiar é essencial aos animais e ao homem, sendo algo natural para estes. As formulações aristotélicas nos mostram que através da imitação adquirimos nossos primeiros conhecimentos, sendo o ato da cópia ainda uma fonte de prazer. Aristóteles parte da formulação lógica de que a imitação pressupõe a imaginação e a comparação. Nunes [op. Cit.: 40], a respeito de Aristóteles, nos diz que “no homem, a tendência imitativa está associada à própria Razão, a qual se manifesta na arte, que é o modo correto, racional de fazer e produzir”.

Se a imitação parte da imaginação, como nos diz o filósofo grego, a produção da arte está realmente liberta do real, servindo-se deste somente como forma inicial, para logo em seguida estar desimpedida para um jogo lúdico de associações, já que imaginar é a capacidade que o homem possui de preencher, através da linguagem, as lacunas deixadas por discursos incompletos ou por deficiências em nossa forma de perceber e existir no mundo [Flusser 2002]. É assim que o filósofo aceita de bom grado a arte como aparência, ideia que seria absolutamente rejeitada por seu mestre Platão. A partir da aceitação de que a arte possa ser aparência, Aristóteles a livra do compromisso com o real e a coloca no meio do caminho entre a ilusão completa. Este meio termo, entre existência e inexistência, é chamado de verossimilhança.

Campo das possibilidades, a verossimilhança contém dados do real, mas sua grande força enquanto motor criativo é o espaço imaginativo que esta abre, estando associada a um constante estado de devir. A arte, portanto, nunca pode ser exaurida, pois bebe nesta fonte constante de possibilidades, de produção e de interpretação, já que quem contempla uma obra também participa de sua construção [Eco 1976]. As culturas ocidentais são frutos destas discussões, que surgiram na Grécia antiga, sendo os jogos digitais um modo de atualizar este imenso campo de possibilidades, muitas vezes contraditórias. É necessário balizar e valorizar o debate a respeito dos valores estéticos e das múltiplas interfaces com a arte encontradas nos jogos digitais, produtos de linguagem completamente imersos nas intrincadas formas pelas quais a cultura se mostra nas sociedades contemporâneas.

O conceito de imaginação abordado revela como os jogos digitais surgiram não como meras cópias do real, mas como produtos advindos de procedimentos imaginativos. Os primeiros jogos digitais, como Pong, de 1972, revelam este espaço que, de alguma forma, se perdeu no decorrer da evolução técnica a que os dispositivos digitais estão constantemente submetidos. Ao jogador era solicitada uma enorme carga de imaginação para crer que um ponto quadrado branco, em uma tela negra, era uma bola de ping-pong – submetida a leis da física que não estavam presentes no jogo digital –, e que dois retângulos, cujos movimentos eram livres, representavam raquetes. O poder de síntese destes jogos transformava-os em amplos espaços abertos para que a resignificação se desse de forma contínua, requisitada sempre pela sedução que a linguagem nascente dos jogos digitais exercia. Este espaço tornava-se factível através da tensão constante entre o visto e o imaginado.

4. O modo de ser da estética

Para tornar mais claro o uso que fazemos do conceito de estética, faz-se necessário um aprofundamento maior no espaço filosófico recoberto pelo termo. Confundida com o belo, a estética trata-se de

algo muito diferente das teorias da arte, às quais correspondia uma práxis e, portanto, pretendiam estabelecer normas e diretrizes para a produção artística. A estética é uma filosofia da arte, o estudo, sob um ponto de vista teórico, de uma atividade da mente: a estética, de fato, se situa entre a lógica, ou filosofia do conhecimento, e a moral, ou filosofia da ação. É também, notoriamente, a ciência do “belo”, mas o belo é o resultado de uma escolha, e a escolha é um ato crítico ou racional, cujo ponto de chegada é o conceito. Não se pode, contudo, dar uma definição absoluta do belo; como é a arte que o realiza, só se pode defini-lo enquanto realizado pela arte. [Argan op. Cit.: 22].

Ao assumirmos a estética como sendo a filosofia da arte o fazemos do modo como Hegel [2001:27] destacou em suas lições sobre o tema:

Estas lições são dedicadas à estética, cujo objeto é o amplo reino do belo; de modo mais preciso, seu âmbito é a arte, na verdade, a bela arte. O nome estética decerto não é propriamente de todo adequado para este objeto, pois “estética” designa mais precisamente a ciência do sentido, da sensação [Empfinden]. Com este significado, enquanto uma nova ciência ou, ainda, enquando algo que deveria ser uma nova disciplina filosófica, teve seu nascimento na escola de Wolff, na época em que na Alemanha as obras de arte eram consideradas em vista das sensações que deveriam provocar, como, por exemplo as sensações de agrado, de admiração, de temor, de compaixão e assim por diante. Em virtude da inadequação ou, mais precisamente, por causa da superficialidade deste nome, procuraram-se também formar outras denominações, como o nome kalística. Mas também este se mostrou insatisfatório, pois a ciência à qual se refere não trata do belo em geral, mas tão somente do belo da arte. Por isso, deixaremos o termo estética assim como está. Pois, enquanto mero vocábulo, ele é para nós indiferente e uma vez que já penetrou na linguagem comum pode ser mantido como um nome. A autêntica expressão para nossa ciência é, porém, “filosofia da arte” e, mais precisamente, “filosofia da bela arte”.

Prosseguindo, podemos dizer que

num primeiro sentido – que aliás, é o seu sentido primordial – a filosofia da arte designa originalmente a sensibilidade como tendo o duplo significado de conhecimento sensível (percepção) e de aspecto sensível de nossa afetividade. […] Num segundo sentido, muito mais atual, designa “toda a reflexão filosófica sobre a arte” [Huisman 2008:9-10].

Refazendo o caminho que nos permite chegar a tal concepção, foi Sócrates (470-399 a.C) quem primeiro indagou sobre a essência – o que uma coisa é como é [Heidegger 2008:11] – do que é possível à arte representar. Porém, como vimos, coube a seu discípulo Platão elevar a produção artística a categoria de objeto possível de investigação teórica, questionando-se sobre “o seu valor, sua razão de ser e o seu lugar na existência humana” [Nunes op. Cit.: 8]. Um conjunto teórico mais bem definido só surge, porém, com Aristóteles, que organiza ideias e conceitos teóricos em sua obra chamada “Poética”.

Entretanto, é somente no séc. XVIII que surge a estética como ramo especializado do saber filosófico, fundado por Alexander Gottlieb Baumgarten (1714–1762) através da publicação, em 1750, da obra “Estética ou teoria das artes liberais” [ibidem: 10]. Baumgarten

definiu o Belo como a perfeição do conhecimento sensível, e dividiu a estética em duas partes: a teórica, onde estuda as condições do conhecimento sensível que correspondemà beleza, e a prática, na qual, ocupando-se da criação poética, chega a esboçar uma espécie de lógica da imaginação, que contém os princípios necessários à formação do gosto e da capacidade artística [ibidem: 13, grifos do autor].

A estética amplia o campo da produção simbólica de linguagem, aproximando a arte do horizonte conceitual, mas não desprezando sua vocação empírica. A partir destas concepções, percebemos que a produção artística tende sempre para um ideal inalcansável e que este é o verdadeiro modo de ser do homem [Argan, op. Cit.: 11]. Atingir o utópico ideal estético da perfeição significaria alcançar um nível de passividade máximo, de relaxamento da tensão essencial encontrada na arte. Significaria, portanto, o final da própria arte.

E em que, ou o que, a arte tensiona? Em grande parte a expectativa racional, que procura afirmar-se pela busca de algo finalizado, que seja um vetor unívoco de horizonte promissor futuro. A arte pode tender para um fim ideal, mas apenas no sentido de abarcar o espírito humano em um tipo de experiência sempre prospectiva, nunca completamente efetiva. A arte formaliza, informa o mundo, mas apenas para desinformá-lo logo depois, repetindo este ciclo em loop eterno, mas nunca igual.

A consciência deste loop, eterno retorno a algo que não foi ainda explorado em sua totalidade, e nem pode ser, é um dos pilares que sustentam a beleza do ser da arte. A este respeito, nos diz Deleuze [2008:22]:

Não basta que tudo comece, é preciso que tudo se repita, uma vez encerrado o ciclo das combinações possíveis. O segundo momento não é aquele que sucede o primeiro, mas é o reaparecimento do primeiro quando se encerra o ciclo dos outros momentos. A segunda origem, portanto, e mais essencial que a primeira, porque ela nos dá a lei da série, a lei da repetição, da qual a primeira origem nos dava os momentos.

Mesmo com a repetição cíclica, a arte apenas tende para um ideal, mas não o alcança plenamente. Não pode alcançá-lo. Não pode resolver por completo os segredos da alma humana. Realizar tal proeza impensável seria inviabilizar o próprio homem. E por isso na arte se revela e esconde a verdade daquilo que é [Heidegger op. Cit.]. Cabe a nós jogarmos este jogo enigmático.

Daí nosso entendimento de que as tentativas para sufocar o espaço destinado à imaginação nos jogos digitais, por meio de gráficos cada vez mais sofisticados e que se pretendem perfeitos, culmina no próprio esgotamento das possibilidades narrativas destes e na eliminação da tensão que é um dos grandes pilares propulsores da sedução exercida pelos jogos digitais.

O caminho trilhado pela arte moderna e pelas formas contemporâneas de linguagem revelam que os conceitos visuais adotados, ou pretendidos, na maciça maioria dos jogos digitais produzidos atualmente estão em descompasso com os aspectos iconográficos, sociais, culturais e filosóficos da arte, o que torna a discussão sobre uma estética dos games problemática, por se estar em franco solo do juízo de gosto, determinado pelo imaginário imposto pela indústria do entretenimento e pelo discurso da técnica por esta mesma, desvinculada, artificialmente, da arte.

É necessário perceber que, ao estabelecer a arte como o domínio principal de tensionamento da linguagem, da criação ficcional, a estética concede ao artista o poder da linguagem: o dom da criação, onde a linguagem da arte explica-se unicamente por ela mesma. Uma poderosa e irrestrita meta-linguagem. O objeto da arte passa a não derivar de mais nada externo a ele, sendo a arte um fim em si mesma. Não presta mais contas ao real, mas cria sua própria realidade, seus próprios conceitos de beleza. Passa, como indica Argan [op. Cit.] a ser uma experiência primária, dedicada à sua própria produção. Sem o peso do real, a linguagem pode ser pura poética, livre e descompromissado estado de invenção.

A etimologia da palavra estética – derivada da palavra grega aisthesis (sensibilidade) – indica uma ligação com o que é produzido pelo sensível, e não pelo racional. O belo passa a não estar mais nas coisas, no mundo natural, mas no trato sensível com elas. Pelo tratamento e profundidade que dispensa à compreensão da produção e fruição do que é sensível, as reflexões estéticas constróem-se em constante dialogia entre a filosofia e a arte, confundindo-se inevitavelmente com a história de ambas.

A estética, devido a vasta dimensão que cobre, não apresenta-se como área do conhecimento isolada ou restrita. Ao contrário, seus valores penetram os campos da moral – portanto dos costumes e hábitos –, da política e da técnica. A reflexão estética está no centro das discussões humanas, o que aplica-se também aos frutos das tecnologias – técnicas aplicadas – humanas, caso dos jogos digitais, herdeiros do que Flusser [2002] apropriadamente nomeia como “texto científico aplicado”.

Na verdade, técnica e arte tem uma origem comum. Ambas palavras derivam do termo grego tékne, que designava todo e qualquer meio apto a obtenção de determinado fim [Nunes op. Cit.]. Entretanto, o produto da arte diferencia-se por seu caráter eminentemente projetual, que lhe confere a importância de indicar linhas guias para a sociedade, ao mesmo tempo em que nega a pré-existência destas guias, estabelecendo um importante jogo com o acaso que confere ao corpo social a possibilidade de autodeterminar-se [Naves op. Cit.].

5. Conclusões

Como visto, estamos diante de um vasto campo de estudos, que remonta ao auge da civilização e da filosofia grega, e que nos chega na forma de linguagens absolutamente híbridas e sedutoras, onde os códigos verbais, sonoros e imagéticos se confundem de um modo nunca antes experimentado.

Mais do que tratar da beleza em seus aspectos de gosto, a estética ocupa-se de uma ética que nos parece faltar na atual produção dos jogos digitais, principalmente por estes não contemplarem dados estéticos que permitam reflexões por parte de quem joga. Falta aos jogos digitais este poder de causar reflexão porque falta tensão a estes. Tensão como espaço imaginativo, de construção de linguagens. A esfera lúdica, de elaboração de possibilidades, encontra-se restrita por uma doutrina do belo, ditada pelos padrões forçados que a indústria impõem e que pouco são discutidos ou avaliados fora do âmbito dos números frios das vendas e das análises dos departamentos de marketing. Se a avaliação destes padrões é pequena, a proposição de alternativas encontra-se totalmente marginalizada, em parte por estarmos condicionados a um padrão de sociedade calcado no conceito compartimentado de técnica erigido pela modernidade, que dá ao discurso tecnológico um valor superior aos conceitos filosóficos que são pilares de toda técnica.

Deste modo, uma atenção mais apurada, em direção às proposições que o campo dos estudos estéticos vem realizando ao longo dos séculos, pode impulsionar novas formas, mais contextualizadas, de entender a profunda relação entre arte, técnica e jogos digitais, onde, talvez, possamos identificar o belo conceito de jogo que Schiller [1995:83] observou no trato do homem com a estética:

o homem joga somente quando é homem no pleno sentido da palavra e somente é homem pleno quando joga [...] com o agradável, com o bom, com a perfeição, o homem é apenas sério; com a beleza, no entanto, ele joga (grifo do autor).

Referências

ARGAN, G. C., 2008. Arte Moderna. Do iluminismo aos movimentos contemporâneos. São Paulo: Companhia das Letras.

BAYER, R., 1998. Historia de la estetica. Cidade do México: Fonde de cultura económica.

COSTA, M., 1995. O sublime tecnológico. São Paulo: Experimento.

DELEUZE, G., 2008. A ilha deserta e outros textos. São Paulo: Iluminuras.

ECO, U., 1976. Obra aberta. Forma e indeterminação nas poéticas contemporâneas. São Paulo: Perspectiva.

FLUSSER, V., 2002. Filosofia da caixa preta. Rio de Janeiro: Relume Dumará.

_________ 2007. Forma e Material. In: O mundo codificado. Por uma filosofia do design e da comunicação. São Paulo: Cosac Naify.

_________ 1979. Natural:mente. Vários acessos ao significado de natureza. São Paulo: Livraria Duas Cidades.

HEIDEGGER, M., 2008. A origem da obra de arte. Lisboa: Edições 70.

HEGEL, G. W. F., 2001. Cursos de estética I. São Paulo: Edusp.

HUISMAN, D., 2008. A estética. Lisboa: Edições 70.

IBRI, I., 1992. Kósmos Noetós. São Paulo: Editora Perspectiva.

MARCONDES, D., 2008. Iniciação à História da Filosofia. Dos pré-socráticos a Wittgenstein. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.

MOLES, A., 1981. Teoria dos objetos. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro.

NAVES, R., 2008. Prefácio in ARGAN, G. C. Arte Moderna.
Do iluminismo aos movimentos contemporâneos.
São Paulo: Companhia das Letras.

NUNES, B., 2002. Introdução à filosofia da arte. São Paulo: Ática.

SCHILLER, F., 1995. A educação estética do homem. Numa série de cartas. São Paulo: Iluminuras.

SCHOPENHAUER, A., 2001. Metafísica do belo. São Paulo: Unesp.

EDIÇÃO ABRIL/2016
  • Fabrizio Augusto Poltronieri (1976), pesquisador, programador e artista, tendo participado em diversas exposições coletivas e individuais. Doutor em Comunicação e Semiótica pela PUC/SP. Realizou pesquisas de pós-doutorado sobre o início da arte computacional na Europa no Royal College of Art, Londres, e sobre videogames e produção de conhecimento no Gamification Lab, Leuphana Universität, Lüneburg, Alemanha.
Seções: Início | Artigos | Sobre a Benzaiten
Canais: Blog | Glossário | Fotografia Virtual

Colaboração: Jean Escoto | Hospedagem: Hugo Cristo