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Doom: claustrofóbico prazer

 

Por Alexandre Maravalhas

 

Doom não me agradou logo de início: ao contrário, como se diria, foi amor à segunda vista. Mesmo dando os devidos descontos temporais pela minha posição de jogador moderado na época do lançamento de Doom, meu contato com ele foi retardado em muito. Exigências ou preconceitos pessoais não resolvidos foram fatores que distorceram minha opinião e me afastaram inicialmente deste produto de primeira pessoa da hoje famosa Id Software. Doom já era moda no mercado e evidente no universo dos jogos do momento, praticamente saindo da categoria de novidade quando começei a me aventurar em seus labirintos sombrios.

Lembro ter Doom como "mais um" jogo de tiro, numa análise quase pejorativa, equivocada e simplista. É provável que, na época, o equipamento e acessórios áudio-visuais onde experimentei observar ou jogar superficialmente Doom (nos horários de almoço na empresa, talvez), não tenha despertado em mim a devida atenção para a obra. Mais provável ainda que uma limitação sonora tenha me desestimulado em muito; mas por sorte houve um remédio tardio, mas bem efetivo.

Minha atenção ou incursão aos primeiros minutos da primeira fase do jogo ou pouco mais foram, como disse, em princípio, desanimadores, haja visto que os micros disponíveis não ofereciam, no mínimo, uma qualidade sonora razoável, emitindo aquele efeito pobre, arranhado e "computadorizado" (bipes) que não me envolvia em nada no clima, pelo contrário, um ranger mental de dentes quase. O uso de teclado para comandar o personagem produziam movimentos digitalmente secos, duros e robóticos, reduzindo tanto as possibilidade de realismo, que desisti. Passava reto.

Condições favoráveis

Passado o tempo, neste momento com o meu equipamento particular já mais avançado (e não aqueles PCs comerciais da empresa), retomei meu contato com o jogo. É evidente e deteminante a influência positiva que os recursos sonoros (agora já mais próximo de um ideal, tecnologicamente falando), causaram em mim. (Repare que o problema residia no equipamento, não na arte do jogo em si.)

Na época eu estudava música por hobby e tinha um teclado eletrônico Yamaha. Pois o golpe final para essa jornada foi a possibilidade de conexão entre meu teclado e o PC. Na época, a tecnologia indicava que a adoção de músicas MIDI era uma boa e flexível solução para a execução da trilha sonora dos jogos, seja nas placas de som, seja em um instrumento compatível com GM, o General MIDI, um padrão de comunicação entre equipamentos eletrônicos. Traduzindo, isto significa que a partir da conexão do computador a um instrumento musical eletrônico, a execução das trilhas sonoras do jogo é feita no instrumento musical em questão (no meu caso, um teclado Yamaha PSR 510), com capacidade sonora de qualidade superior que as placas de som convencionais da época.

Desta forma, com computador adequado, efeito sonoro realístico e a possibilidade das trilhas sonoras de alta qualidade, transportei meu conceito sobre o jogo para uma categoria superior, efetivando meu ticket de entrada (ou melhor, minha serra elétrica) para abarcar nesse universo, por votla de 1996. Some-se a estes fatores, a questão da jogabilidade, quando descobri e aperfeiçoei, pela primeira vez, o uso do mouse na movimentação básica do jogo.

A adoção do mouse tornou tudo muito mais ágil, realístico e orgânico, experimentando uma realidade virtual até então desconhecida, numa visão de primeira pessoa, quando o jogador se sente na "pele" do personagem, observando tudo à sua volta em 3D e em vários níveis irregulares de altura, acessíveis pelo personagem. Diferente do Wolfstein 3D, o seu antecessor, nos labirintos da temática nasista, onde existia apenas um nível superficial: havia apenas o próprio chão onde se pisa. Em Doom, as fases (mapas) foram muito mais elaboradas, com uma complexidade estonteante e muitos níveis ou camadas de altura, escadas, elevadores, enfim. Embora não fosse possível movimentar a "cabeça" (olhar) do personagem na vertical, isso foi resolvido funcionalmente e não tirou a intensidade dos recursos.

Bom, destrinchados e ordenados questões tecnológicas, que em princípio foram motivos de desânimo, mas foi responsável, por fim, pelo interesse dos originais recursos áudio-visuais disponíveis, que atuarão com certeza no envolvimento e no desenvolvimento dentro do jogo, que merece o título desta reportagem: claustrofóbico! Este, entre outros adjetivos não muito digeríveis, foram pra mim, elementos que potencializaram minha imersão no universo de Doom.

Envolvimento

Conta a história que o personagem, último fuzileiro sobrevivente de uma base terráquea instalada em Marte, se vê enfrentando seres bizarros, que surgem através de uma abertura anormal dos portais de transporte usuais, atacando o local e extingüindo toda vida aliada. O universo de Doom, é regido pela seguinte funcionalidade, no tocante ao desenvolvimento: percorra os intrincados mapas em busca das chaves essenciais que irão permitir encerrar cada etapa e prosseguir. Também se faz uso de uma série conectada de mecanismos de abre/fecha de passagens, entre outras, que dão a continuidade do personagem no ambiente.

As sensações no envolvimento com o cenário sinistro de Doom, pelo menos particulares, são expressas nos sustos e taquicardia, fadiga visual sob ambientes de pouca ou problemática iluminação, excitação, pelo poder da imersão pessoal no desconhecido, principalmente nos locais inéditos. Por vezes, o ambiente e a trilha sonora remetem tanto ao sobrenatural, que se instalava um estado de estranheza ou insegurança total sobre que caminho tomar, que atitude executar ou, pior, se consigo ou não me movimentar no inóspito, sombrio, mal-cheiroso e húmidas locações, sem comprometer a integridade psico-física e existencial do personagem. (Vale lembrar aquela sensação de estar sendo perseguido, quando se locomove em um ambiente escuro: está presente também aqui.) Associações psicológicas como fobia, asco visual etc. eram comuns. A adrenalina aparecia em vários cenários, onde a ação exigia uma atividade motora mais ágil.

Comum também, era apertar os olhos para tentar enxergar um vulto logo além não definido; reagir num sobresalto para trás, na tentativa de escapar àquele ser que bruscamente surge com rosnado agressivo; erguer a cabeça sobre os ombros na sorte de se "ver" o que há por trás de uma fenda não bem resolvida, enfim. Ações involuntárias que não surgiriam resultado prático, já que estamos na verdade, na frente de um monitor... (Diga isso aos sentidos!) Também à sorte da aventura e a honra de defender sua forma consciente humana em meio a tanta aberração e um sentimento de estar andando por caminhos não muito convidativos, sejam pelos aspectos "concretos" (pelas dificuldades do ambiente em si), sejam por aspectos sugestivos, um estado por vezes surreal, evidenciado pelo clima de suspense, biomecânico, de exoterismo e uma crueldade explicitamente animal. Animal, às vezes, no sentido literal!

Em determinada etapa do jogo, um estrondo grave, praticamente sentido nas bases, proferido por uma passada tão lentamente ritmada quanto enorme é a visão que proporcionalmente se faz deste ser de duas patas, que caminha mas que não leva a crer pertencer necessariamente à raça humana, haja visto seu porte sugerido. Tamanho aqui é documento: a extensão dos cenários, a distância que se nota ao ver seu próprio tiro percorrer pelo ambiente até se chocar com seus limites, além de claro, o porte físico ou moral dos inquietos personagens envolvidos; fatores que exacerbam o sentimento de inferioridade diante de tal roteiro.

Bestial é quase tudo em Doom, aliás este é um elemento que aumenta a sensação de isolamento e solidão, a não ser pela presença dos soldados malfeitores, a vaga lembrança do que é a companhia fraternal do semelhante é dizimada ao notar-se cenas macabras onde vários corpos humanos, muitos deles mortos, mutilados ou com algum resto de vida que se esvai na agonia. Por vezes, porém, basta a poça de sangue para se imaginar o que fora alimentação aos vorazes, senão motivo de sacrifício em nome de um ritual qualquer.

Na questão da individualidade, como citei acima, o modo de multi-jogador, especificamente, no modo cooperativo traz uma estranha e presente motivação ao trabalho de equipe, mutuamente protetora. Quando jogava em modo de cooperação, via modem com um(a) colega, o som denunciava os ataques inadvertidos ao companheiro, distante se não coordenada previamente as ações. Tomava conta, então, a sensação vital de proteção ao próximo (principalmente com parceira feminina!), como a mim mesmo da outra parte, tendo sempre em mente, pesando, o fato de estarmos ambos sozinhos e na mesma empreitada, engajados no objetivo de sobreviver no universo imprevisível de Doom.

Assim como ambientação gráfica, personagens, mecânica 3D, a ação e a jogabilidade e, claro, enredo, merece atenção especial, como disse desde o inicio da matéria, o FX (efeito) e trilha sonora, que devidamente reproduzida (seja wave ou MIDI) e ambientada, com caixas com bom grave (ou fones, que davam dramaticidade desesperadora, junto com quarto escuro), hipnotizavam o jogador mais atento. A trilha, tanto do primeiro quanto do segundo Doom, é basicamente um rock pesado (Quake II tambem usou este estilo), servindo bem pra temática de ação. Surpreendem porém, algumas trilhas com temáticas de tensão, onde aparecem as guitarras com tons baixos, contínuos e densos ou por vezes. Destaque para a MAP18, com uma bela guitarra em arpejo e a estranhíssima MAP30, ambas do Doom II. Veja também a trilha "Bunny" do primeiro Doom, que começa com melodia estranhamente infantil e seque em rock até o final.

O que me motivava mergulhar neste universo inquetante? Aventura do desconhecido? Honra de virtualmente combater o agressivo e paralelo universo de seres agressores e maquiavélicos? A experimentação virtual de presenciar um mundo transtornado, sendo o personagem principal, único e consciente elemento discordante do restante do meio? Praticar tiro ao alvo, ou aperfeiçoar a coordenação motora? Absorver conteúdo intelectual oferecidos nas artes áudio-visuais ou de criação tecnológica, saboreando o leque do poder do imagiário humano? Abstrair valores morais e sociais para o pensamento prático? (Afinal, porque a preferência pelo cinema de terror e suspense?) O puro entretenimento? Talvez todos estes e outros fatores.

Precursor

Pra finalizar, é importante dizer que Doom, enorme sucesso da indústria dos jogos, e os produtos que vieram do seu motor (engine), títulos como Heretic, Descent e outros, estabeleceram uma evolução gráfico-estética-funcional fundamental na concretização dos motores de jogos 3D atuais, como Quake. O equipamento evoluiu, a tecnologia e os jogos também. Porém, a densidade da imersão no seu universo e a posibilidade do envolvimento emotivo proporcionado por Doom, está sendo, ainda hoje, difícil de superar nos mesmos moldes.

ABRIL/2003
  • Site da produtora: Id Software
  • Alexandre Maravalhas (1971), o Alexo, curitibano, trabalha com design gráfico desde 1996 e é apreciador informal de jogos desde bem antes. Fundou a Benzaiten com intuito de mostrar que "joguinhos" não são simplesmente joguinhos, nem tampouco direcionados apenas para crianças. Alexo diz que não assume explicitamente sua idade.
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Colaboração: Jean Escoto | Hospedagem: Hugo Cristo