Doom: claustrofóbico prazer
Doom
não me agradou logo de início: ao contrário,
como se diria, foi amor à segunda vista. Mesmo dando
os devidos descontos temporais pela minha posição
de jogador moderado na época do lançamento de
Doom, meu contato com ele foi retardado em muito. Exigências
ou preconceitos pessoais não resolvidos foram fatores
que distorceram minha opinião e me afastaram inicialmente
deste produto de primeira pessoa da hoje famosa Id Software.
Doom já era moda no mercado e evidente no universo
dos jogos do momento, praticamente saindo da categoria de
novidade quando começei a me aventurar em seus labirintos
sombrios.
Lembro ter Doom como "mais um" jogo de tiro, numa
análise quase pejorativa, equivocada e simplista. É
provável que, na época, o equipamento e acessórios
áudio-visuais onde experimentei observar ou jogar superficialmente
Doom (nos horários de almoço na empresa, talvez),
não tenha despertado em mim a devida atenção
para a obra. Mais provável ainda que uma limitação
sonora tenha me desestimulado em muito; mas por sorte houve
um remédio tardio, mas bem efetivo.
Minha atenção ou incursão
aos primeiros minutos da primeira fase do jogo ou pouco mais
foram, como disse, em princípio, desanimadores, haja
visto que os micros disponíveis não ofereciam,
no mínimo, uma qualidade sonora razoável, emitindo
aquele efeito pobre, arranhado e "computadorizado"
(bipes) que não me envolvia em nada no clima, pelo
contrário, um ranger mental de dentes quase. O uso
de teclado para comandar o personagem produziam movimentos
digitalmente secos, duros e robóticos, reduzindo tanto
as possibilidade de realismo, que desisti. Passava reto.
Condições favoráveis
Passado o tempo, neste momento com o meu equipamento
particular já mais avançado (e não aqueles
PCs comerciais da empresa), retomei meu contato com o jogo.
É evidente e deteminante a influência positiva
que os recursos sonoros (agora já mais próximo
de um ideal, tecnologicamente falando), causaram em mim. (Repare
que o problema residia no equipamento, não na arte
do jogo em si.)
Na época eu estudava música por
hobby e tinha um teclado eletrônico Yamaha. Pois o golpe
final para essa jornada foi a possibilidade de conexão
entre meu teclado e o PC. Na época, a tecnologia indicava
que a adoção de músicas MIDI era uma
boa e flexível solução para a execução
da trilha sonora dos jogos, seja nas placas de som, seja em
um instrumento compatível com GM, o General MIDI, um
padrão de comunicação entre equipamentos
eletrônicos. Traduzindo, isto significa que a partir
da conexão do computador a um instrumento musical eletrônico,
a execução das trilhas sonoras do jogo é
feita no instrumento musical em questão (no meu caso,
um teclado Yamaha PSR 510), com capacidade sonora de qualidade
superior que as placas de som convencionais da época.
Desta forma, com computador adequado, efeito
sonoro realístico e a possibilidade das trilhas sonoras
de alta qualidade, transportei meu conceito sobre o jogo para
uma categoria superior, efetivando meu ticket de entrada (ou
melhor, minha serra elétrica) para abarcar nesse universo,
por votla de 1996. Some-se a estes fatores, a questão
da jogabilidade, quando descobri e aperfeiçoei, pela
primeira vez, o uso do mouse na movimentação
básica do jogo.
A adoção do mouse tornou tudo
muito mais ágil, realístico e orgânico,
experimentando uma realidade virtual até então
desconhecida, numa visão de primeira pessoa, quando
o jogador se sente na "pele" do personagem, observando
tudo à sua volta em 3D e em vários níveis
irregulares de altura, acessíveis pelo personagem.
Diferente do Wolfstein 3D, o seu antecessor, nos labirintos
da temática nasista, onde existia apenas um nível
superficial: havia apenas o próprio chão onde
se pisa. Em Doom, as fases (mapas) foram muito mais elaboradas,
com uma complexidade estonteante e muitos níveis ou
camadas de altura, escadas, elevadores, enfim. Embora não
fosse possível movimentar a "cabeça"
(olhar) do personagem na vertical, isso foi resolvido funcionalmente
e não tirou a intensidade dos recursos.
Bom, destrinchados e ordenados questões
tecnológicas, que em princípio foram motivos
de desânimo, mas foi responsável, por fim, pelo
interesse dos originais recursos áudio-visuais disponíveis,
que atuarão com certeza no envolvimento e no desenvolvimento
dentro do jogo, que merece o título desta reportagem:
claustrofóbico! Este, entre outros adjetivos não
muito digeríveis, foram pra mim, elementos que potencializaram
minha imersão no universo de Doom.

Envolvimento
Conta a história que o personagem, último
fuzileiro sobrevivente de uma base terráquea instalada
em Marte, se vê enfrentando seres bizarros, que surgem
através de uma abertura anormal dos portais de transporte
usuais, atacando o local e extingüindo toda vida aliada.
O universo de Doom, é regido pela seguinte funcionalidade,
no tocante ao desenvolvimento: percorra os intrincados mapas
em busca das chaves essenciais que irão permitir encerrar
cada etapa e prosseguir. Também se faz uso de uma série
conectada de mecanismos de abre/fecha de passagens, entre
outras, que dão a continuidade do personagem no ambiente.
As sensações no envolvimento com
o cenário sinistro de Doom, pelo menos particulares,
são expressas nos sustos e taquicardia, fadiga visual
sob ambientes de pouca ou problemática iluminação,
excitação, pelo poder da imersão pessoal
no desconhecido, principalmente nos locais inéditos.
Por vezes, o ambiente e a trilha sonora remetem tanto ao sobrenatural,
que se instalava um estado de estranheza ou insegurança
total sobre que caminho tomar, que atitude executar ou, pior,
se consigo ou não me movimentar no inóspito,
sombrio, mal-cheiroso e húmidas locações,
sem comprometer a integridade psico-física e existencial
do personagem. (Vale lembrar aquela sensação
de estar sendo perseguido, quando se locomove em um ambiente
escuro: está presente também aqui.) Associações
psicológicas como fobia, asco visual etc. eram comuns.
A adrenalina aparecia em vários cenários, onde
a ação exigia uma atividade motora mais ágil.
Comum também, era apertar os olhos para
tentar enxergar um vulto logo além não definido;
reagir num sobresalto para trás, na tentativa de escapar
àquele ser que bruscamente surge com rosnado agressivo;
erguer a cabeça sobre os ombros na sorte de se "ver"
o que há por trás de uma fenda não bem
resolvida, enfim. Ações involuntárias
que não surgiriam resultado prático, já
que estamos na verdade, na frente de um monitor... (Diga isso
aos sentidos!) Também à sorte da aventura e
a honra de defender sua forma consciente humana em meio a
tanta aberração e um sentimento de estar andando
por caminhos não muito convidativos, sejam pelos aspectos
"concretos" (pelas dificuldades do ambiente em si),
sejam por aspectos sugestivos, um estado por vezes surreal,
evidenciado pelo clima de suspense, biomecânico, de
exoterismo e uma crueldade explicitamente animal. Animal,
às vezes, no sentido literal!
Em determinada etapa do jogo, um estrondo grave,
praticamente sentido nas bases, proferido por uma passada
tão lentamente ritmada quanto enorme é a visão
que proporcionalmente se faz deste ser de duas patas, que
caminha mas que não leva a crer pertencer necessariamente
à raça humana, haja visto seu porte sugerido.
Tamanho aqui é documento: a extensão dos cenários,
a distância que se nota ao ver seu próprio tiro
percorrer pelo ambiente até se chocar com seus limites,
além de claro, o porte físico ou moral dos inquietos
personagens envolvidos; fatores que exacerbam o sentimento
de inferioridade diante de tal roteiro.
Bestial é quase tudo em Doom, aliás
este é um elemento que aumenta a sensação
de isolamento e solidão, a não ser pela presença
dos soldados malfeitores, a vaga lembrança do que é
a companhia fraternal do semelhante é dizimada ao notar-se
cenas macabras onde vários corpos humanos, muitos deles
mortos, mutilados ou com algum resto de vida que se esvai
na agonia. Por vezes, porém, basta a poça de
sangue para se imaginar o que fora alimentação
aos vorazes, senão motivo de sacrifício em nome
de um ritual qualquer.

Na questão da individualidade, como citei
acima, o modo de multi-jogador, especificamente, no modo cooperativo
traz uma estranha e presente motivação ao trabalho
de equipe, mutuamente protetora. Quando jogava em modo de
cooperação, via modem com um(a) colega, o som
denunciava os ataques inadvertidos ao companheiro, distante
se não coordenada previamente as ações.
Tomava conta, então, a sensação vital
de proteção ao próximo (principalmente
com parceira feminina!), como a mim mesmo da outra parte,
tendo sempre em mente, pesando, o fato de estarmos ambos sozinhos
e na mesma empreitada, engajados no objetivo de sobreviver
no universo imprevisível de Doom.
Assim como ambientação gráfica,
personagens, mecânica 3D, a ação e a jogabilidade
e, claro, enredo, merece atenção especial, como
disse desde o inicio da matéria, o FX (efeito) e trilha
sonora, que devidamente reproduzida (seja wave ou MIDI) e
ambientada, com caixas com bom grave (ou fones, que davam
dramaticidade desesperadora, junto com quarto escuro), hipnotizavam
o jogador mais atento. A trilha, tanto do primeiro quanto
do segundo Doom, é basicamente um rock pesado (Quake
II tambem usou este estilo), servindo bem pra temática
de ação. Surpreendem porém, algumas trilhas
com temáticas de tensão, onde aparecem as guitarras
com tons baixos, contínuos e densos ou por vezes. Destaque
para a MAP18, com uma bela guitarra em arpejo e a estranhíssima
MAP30, ambas do Doom II. Veja também a trilha "Bunny"
do primeiro Doom, que começa com melodia estranhamente
infantil e seque em rock até o final.
O que me motivava mergulhar neste universo inquetante?
Aventura do desconhecido? Honra de virtualmente combater o
agressivo e paralelo universo de seres agressores e maquiavélicos?
A experimentação virtual de presenciar um mundo
transtornado, sendo o personagem principal, único e
consciente elemento discordante do restante do meio? Praticar
tiro ao alvo, ou aperfeiçoar a coordenação
motora? Absorver conteúdo intelectual oferecidos nas
artes áudio-visuais ou de criação tecnológica,
saboreando o leque do poder do imagiário humano?
Abstrair valores morais e sociais para o pensamento prático?
(Afinal, porque a preferência pelo cinema de terror
e suspense?) O puro entretenimento? Talvez todos estes e outros
fatores.
Precursor
Pra finalizar, é importante dizer que
Doom, enorme sucesso da indústria dos jogos, e os produtos
que vieram do seu motor (engine), títulos como Heretic,
Descent e outros, estabeleceram uma evolução
gráfico-estética-funcional fundamental na concretização
dos motores de jogos 3D atuais, como Quake. O equipamento
evoluiu, a tecnologia e os jogos também. Porém,
a densidade da imersão no seu universo e a posibilidade
do envolvimento emotivo proporcionado por Doom, está
sendo, ainda hoje, difícil de superar nos mesmos moldes.
ABRIL/2003
-
-
Alexandre
Maravalhas (1971), o Alexo, curitibano, trabalha
com design gráfico desde 1996 e é apreciador
informal de jogos desde bem antes. Fundou a Benzaiten
com intuito de mostrar que "joguinhos" não
são simplesmente joguinhos, nem tampouco direcionados
apenas para crianças. Alexo diz que não
assume explicitamente sua idade.
|