Os três maiores mitos sobre produção de música
para jogos
A música tem um papel fundamental em quase
todas as formas de entretenimento. Ela é a base emocional
para muitos filmes, peças e até mesmo publicidade.
Dada a sua importância, é difícil imaginar um
produto de entretenimento sem uma trilha sonora marcante dando suporte
à trama.
Nos jogos de videogame, a importância
da música é ainda maior. Alguns jogos têm duração
de 50 a 70 horas, portanto, a música deve ser realmente boa
para conseguir manter o interesse dos jogadores por tanto tempo.
Ao jogar um game com música irritante, a reação
mais comum do jogador médio seria desligar a música
ou até mesmo parar de jogar. Ninguém consegue suportar
70 minutos de música ruim.
Os jogos casuais e de curta duração
também precisam de boa música. Estes jogos têm
poucos segundos para atrair a atenção dos jogadores
e, se a música não for boa, provavelmente esses jogadores
se sentirão menos atraídos pelo jogo.
Por outro lado, se a música for feita corretamente,
os aspectos artísticos e cognitivos do jogo são intensificados,
aumentando o interesse do jogador. Boa música torna o produto
final mais memorável, bem acabado e atraente. No fim, a música
ajuda o jogador a se sentir “dentro” do jogo, uma sensação
chamada imersão.
Um dos principais objetivos de todo produtor de jogos
é aumentar a imersão dos jogadores. Para atingir esse
resultado, os produtores utilizam elementos como: boa jogabilidade,
desafio crescente, direção de arte eficaz, narrativa
envolvente e, finalmente, música. Porém, ainda existem
mitos na indústria de videogames que impedem que
a música seja utilizada de forma eficaz. Esses mitos são
o assunto principal deste artigo.
Mito número um
Qualquer membro da equipe pode fazer música
A indústria de videogames é
altamente competitiva. A cada dia, surge a necessidade de utilizar
profissionais especializados para cuidar de cada aspecto do jogo.
Mesmo que exista um membro da equipe que possa fazer música
(supondo que esta atividade seja secundária na sua vida),
é improvável que ele tenha a mesma experiência
de um compositor profissional.
A composição é uma arte que
leva uma vida inteira para ser aprendida. Mesmo os veteranos com
muitos anos de experiência sempre dizem que nunca param de
aprender. Isso acontece porque o processo de composição
é complexo e depende de muitos aspectos como: tema do jogo,
forma de gravação, músicos envolvidos, gênero
musical e até mesmo a cultura dominante no período
em que o jogo for lançado, só para citar alguns. Em
resumo, criar música requer dedicação exclusiva
para atingir a excelência.
Os compositores especializados em trilhas de videogames
são treinados para criar música que esteja alinhada
à direção artística do jogo, sem prejudicar
o orçamento alocado para o projeto. Boa música ajuda
a integrar demais aspectos do jogo como os gráficos, jogabilidade
e história, além de intensificar os aspectos cognitivos
do produto, tornando-o mais atraente para os jogadores.
Utilizar profissionais não especializados
para criar a música do projeto é uma opção
arriscada. Música não adequada ao contexto do jogo
pode criar a sensação de que o produto não
foi feito com o devido cuidado, comprometendo até mesmo aspectos
mais bem acabados no jogo, como jogabilidade e narrativa. Se a música
não for boa, provavelmente o jogo causará repulsa
em boa parte dos jogadores.
Mito número dois
Quem cria efeitos sonoros também pode
criar música
Os conhecimentos, habilidades e competências
necessários para criar efeitos sonoros são radicalmente
diferentes dos necessários para compor música. Em
muitos projetos de produtos de entretenimento, a separação
é tão evidente que o profissional encarregado dos
efeitos sonoros sequer chega a ouvir o trabalho da pessoa que compôs
a música até que o produto final seja lançado
no mercado.
O profissional que compõe música é chamado
de compositor, enquanto o que produz efeitos sonoros é geralmente
conhecido como sound designer, ou projetista de som, em uma tradução
livre para o português.
Para ajudar a diferenciar a natureza destes dois trabalhos, segue
abaixo uma lista de conhecimentos e habilidades que um profissional
deve conhecer para compor música e para criar efeitos sonoros.
Conhecimentos e habilidades
necessários para
compor música |
Conhecimentos e habilidades necessários para criar
efeitos sonoros |
- Teoria musical
-
Gêneros musicais
-
Instrumentos musicais (acústicos e eletrônicos)
-
Notação musical
-
Direção musical
|
- Acústica
-
Bibliotecas de efeitos sonoros
-
Manipulação sonora
|
É possível perceber que não existe um único
ponto em comum entre os dois trabalhos, o que enfatiza a grande
diferença de perfil e objetivos desses dois profissionais.
O compositor está preocupado com a adequação
das composições no jogo. Portanto, ele deve ter conhecimento
mínimo sobre teoria musical para poder compor música
que esteja alinhada à direção artística
do projeto. Ele deve também conhecer os gêneros musicais
(por exemplo: rock, erudita, eletrônica) para detectar
qual estilo melhor se adequa ao jogo em questão. Compor exige
que o profissional conheça muito bem os instrumentos que
são utilizados em cada gênero musical. Isso vale para
instrumentos reais e também os instrumentos tocados pelo
computador, que nada mais são do que simulações
de instrumentos reais.
O compositor deve ser capaz de escrever música para compartilhá-la
com outras pessoas. Em 2010, é possível criar música
sem ter conhecimento musical utilizando programas de computador.
Entretanto, a tendência de mercado aponta para trilhas cada
vez mais complexas, onde é necessário utilizar orquestras
com músicos reais, por isso, a notação musical
se torna cada vez mais importante.
Compor envolve muitas pessoas: músicos, produtores, diretores
etc. Por isso, o compositor também deve se comunicar bem
para explicar às outras pessoas os seus objetivos e assim
atingir o resultado esperado.
O profissional que cria efeitos sonoros é responsável
pela inclusão de sons diversos no jogo como explosões,
ruídos de veículos etc. Ele precisa entender como
funciona a acústica, que é o comportamento natural
dos sons em diversos ambientes. Dessa forma ele consegue identificar
que os passos do personagens dentro de uma caverna devem receber
um efeito chamado reverb, ou reverberação.
O projetista de som sabe disso porque ele conhece as propriedades
físicas do ambiente. A caverna é um ambiente fechado
e suas paredes refletem os sons dos passos múltiplas vezes,
criando o efeito de reverberação. Se o personagem
estivesse caminhando em um espaço aberto, sem paredes, esse
efeito não deveria estar lá, já que não
existem paredes para refletir o som dos passos.
A maneira mais simples de criar um efeito sonoro é simplesmente
gravá-lo em um estúdio ou espaço aberto. A
dificuldade desta técnica é que nem sempre é
possível gravar alguns sons sem equipamento específico,
muitas vezes extremamente caros.
Outra opção para criar efeitos é utilizar
sons pré-gravados em bibliotecas de áudio disponíveis
no mercado. Essas bibliotecas armazenam milhares de sons classificados
por: tema, tipo, contexto, época em que foi gravado etc.
O risco de utilizar sons de bibliotecas é que qualquer pessoa
que tenha a mesma biblioteca pode utilizar o mesmo efeito sonoro.
Portanto, jogos diferentes podem compartilhar o mesmo som. Para
o jogador, isso pode causar a impressão de que o jogo tem
baixa qualidade e essa sensação certamente prejudica
a reputação de qualquer produtora de jogos.
Para evitar esse problema, o projetista de som deve saber manipular
estes efeitos, utilizando programas de computador especializados
que transformam o som e geram um resultado diferente do original.
É importante notar que isso nem sempre é possível
por motivos legais. Algumas bibliotecas de sons tem direitos protegidos
que impedem a manipulação dos efeitos publicados.
Ao analisar o trabalho do projetista de som, é possível
perceber que ele não precisa de nenhuma competência
ou habilidade relacionada à composição para
criar um efeito sonoro. Relembrando o exemplo dos passos, existem
três principais maneiras de criar esse efeito:
- gravar os passos em um estúdio com equipamento específico;
- utilizar um som pré-gravado de passos disponível
em uma biblioteca de efeitos sonoros ou
- manipular um som totalmente diferente para torná-lo
similar ao som de passos.
Nas três opções acima, não é
necessário conhecer nada sobre teoria musical, gêneros,
notação, instrumentos musicais ou direção
musical.
A situação contrária também é
verdadeira: o compositor não precisa conhecer as bibliotecas
de efeitos sonoros, acústica ou manipulação
de efeitos sonoros para compor. Obviamente, é importante
conhecer esses assuntos, mas a manipulação de efeitos
sonoros não vai ajudar o compositor a criar nada quando o
jogo ainda está em um estágio inicial e toda a equipe
ainda discute a direção artística do produto.
O compositor deve ser capaz de olhar para as primeiras imagens
conceituais do jogo e imaginar a música na sua cabeça
antes mesmo de ir para o piano, computador ou qualquer instrumento
de sua preferência. Depois de ter composto a música
– ou pelo menos esboçar uma ideia geral de como ela
seria – um novo processo se inicia: a produção.
O papel do produtor, entretanto, é um assunto que está
fora do escopo deste artigo.
Mito número três
O jogo não precisa de música
A audição humana trabalha através da comparação
de som, um fenômeno conhecido como memória auditiva.
Isso significa que, quando se ouve algo, as pessoas tendem a comparar
o que foi ouvido com outro som similar ouvido anteriormente. Quando
se ouve uma banda de rock, por exemplo, a memória
auditiva compara o timbre da guitarra, a voz do cantor, o som da
bateria com outras bandas similares e, assim, reconhece aquela configuração
sonora como banda de rock.
Quando a primeira banda de rock da história se
apresentou para o público, as pessoas ainda não tinham
adquirido a memória auditiva daquele gênero, portanto,
compararam a primeira banda de rock com o que era mais
próximo: o blues. Só que não era exatamente
blues, era um blues mais pesado, agressivo, com
mais atitude. É exatamente isso que ocorre na história
da evolução dos gêneros musicais, novos gêneros
são criados a partir da evolução e modificação
dos antigos e a memória auditiva das pessoas vai reconhecendo
essas modificações e se adaptando ao novo contexto.
Um projeto de jogo de videogame começa com uma
abstração, uma ideia ou apenas um conceito. É
muito difícil para uma pessoa não treinada imaginar
música para um projeto tão embrionário. Afinal
de contas, não existe como comparar essa música com
algo, já que a própria ideia principal do jogo ainda
nem foi desenvolvida.
Com o desenrolar do projeto, muitos aspectos do jogo começam
a tomar forma: história, personagens, jogabilidade, etc.
Se não existir um compositor no time de produção,
a música não vai se desenvolver, deixando a impressão
de que música não é necessária.
É importante envolver o compositor nos momentos iniciais
de concepção do projeto para que a música se
desenvolva tão bem quanto os outros aspectos do jogo. O compositor
é o profissional que pode auxiliar a equipe de produção
neste processo. Ele dirá qual o tipo de música mais
adequada para o projeto, quando ela deve aparecer e qual o impacto
sensorial desta música no jogador. Alguns projetos funcionam
melhor com música minimalista, onde os temas só aparecem
em momentos específicos como lutas, passagens narradas etc.
Existem projetos em que a música assume o papel principal,
como os variados jogos musicais atualmente disponíveis no
mercado.
Conclusão
O compositor é importante em qualquer projeto de
videogame
Independentemente do tamanho e complexidade do projeto, o compositor
é o profissional mais indicado para orientar produtores e
diretores em relação à composição
musical. Este profissional tem as habilidades e conhecimentos necessários
para criar música adequada para intensificar a imersão
dos jogadores, respeitando o orçamento disponível
para o projeto. Na história dessa indústria, jogos
clássicos sempre possuem música memorável.
MARÇO/2010
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Agradecimentos
especiais:
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Parceiros que publicaram
o artigo em inglês:
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Marcelo
Martins (1980) é fundador da Clefbit, compositor,
arranjador, guitarrista e produtor musical formado pelo
IAV em São Paulo e especializado em marketing pela
ESPM. Trabalhou com diversos artistas do mercado nacional,
como Viper e Wanessa Camargo, compôs e co-produziu
todas as músicas da sua própria banda de
rock – Plexus – que lançou três discos desde 2001. Marcelo
também é autor de um livro dedicado aos
músicos inciantes entitulado Comunicação
subterrânea, disponível no site
da Editora Frutos.
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