Jogos eletrônicos: técnica ilusionista ou emancipadora?
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Este estudo foi publicado originalmente na
Revista USP nº 35 (novembro de 1997), veículo
da Coordenadoria de Comunicação Social desta
universidade.
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Apresentação
Este ensaio tem por objetivo traçar
alguns caminhos possíveis de análise para se
pensar os impasses contemporâneos colocados no âmbito
da cultura social.
Trata-se de um texto mais interrogativo do que conclusivo,
parte de um estudo mais amplo [1]
em que se pretende verificar qual é a tendência
cultural das atividades lúdicas em face da tecnologia:
emancipadora ou massificadora? Em outros termos, busca-se
compreender o lugar e o papel da cultura lúdica em
um mundo cada vez mais automatizado, marcado pelo encurtamento
da jornada de trabalho e pelo aumento do tempo livre.
Na atualidade, grande parte de nossas ações
e relações é mediada por objetos eletrônicos.
O desenvolvimento da indústria e a conseqüente
divisão social do trabalho nos séculos XVII
e XVIII apenas marcam o início das transformações
que, em nossos dias, ganham uma sofisticação
técnica inimaginável para aquele período.
Desde um simples transistor até o mais sofisticado
chip testemunha-se o empenho do homem, ao longo do tempo,
no sentido de aprimorar as diversas formas de comunicação.
A rede informacional hoje potencialmente disponível
coroa de êxito esse esforço.
A mecanização e a robótica, através
dos seus mecanismos "inteligentes", tornaram algumas
máquinas aptas a exercer diferentes funções
e a realizar complexas tarefas a partir de um simples gesto
humano. O homem pode, assim, poupar muito de seu tempo, de
sua força e de sua energia física pois em ambos
os processos sua relação com o mundo objetivado
tem-se reduzido principalmente às extremidades do seu
corpo: pé, mão, olho.
Também o ritmo imposto pelo desenvolvimento tecnológico
[2]
mais rápido, mais fugaz tem alterado
o uso dos sentidos, exigindo outros movimentos de corpos,
de gestos, de linguagem. Esse é um processo que atinge
não só os adultos, mas também as crianças
que, em nossos dias, estão tendo que aprender a encurtar
sua fase infans. De modo especial, elas se iniciam nessa aventura
tecnológica via jogos eletrônicos.
Esses jogos representam, para a cultura lúdica infantil
mas não só , o que há de
mais moderno e inovador em matéria de diversão
eletrônica. Também aparentam ser a expressão
cultural do processo de mundialização que, em
última instância, "co-habita e se alimenta"
das culturas e dos imaginários locais e regionais (cf.
Ortiz, 1994).
Tomados a partir desse duplo aspecto símbolo
de modernidade e expressão da cultura global ,
os jogos eletrônicos representam, em nosso estudo, uma
estratégia de análise privilegiada.
Expressão mais bem acabada da cultura lúdica
na modernidade, os jogos eletrônicos são mediadores
entre a criança e os valores socioculturais que, sob
determinado ponto de vista, se pretendem "globais".
Enquanto globais, porém, os valores devem ser abstratos,
desterritorializados, desenraizados, a fim de que possam ser
alienáveis em todas as esferas da sociedade.
Na esfera da cultura lúdica, esses jogos parecem ser
os que melhor sintetizam os valores universais. Nesse sentido,
nosso objeto de estudo não se fecha nos jogos eletrônicos.
Antes, abre-se com eles para tentar reconhecer, no âmbito
da assim chamada pós-modernidade, as estratégias
que possivelmente reforçam, ou que garantem, para as
novas gerações, a absorção dos
ideários fundantes da subjetividade social globalizada.
Trata-se, pois, de um estudo teórico sobre as possibilidades
de realização, no âmbito da cultura, das
bases ontológicas de um novo ser social que deverá
buscar, para além do consumo padrão, a expressão
omnilateral de si.
Trabalho e lazer
Diferente do que acontece às crianças, o adulto,
quando joga ou brinca, realiza uma "fuga da realidade",
uma fuga dos dias estafantes. Nesse sentido, as atividades
lúdicas são apreendidas como uma resposta à
necessidade básica que toda pessoa tem de relaxamento
e distensão. Tais atividades tanto podem corresponder
a um conceito psicológico de catarse, como a uma práxis
habitual da sociedade moderna, onde o tempo é individualmente
percebido como tempo de trabalho e tempo de lazer.
No âmbito da sociedade moderna, como assinalado por
Marx nos Manuscritos de 1844, há um movimento contínuo
de decomposição do processo produtivo, cuja
conseqüência imediata é a formação
de trabalhadores decompostos, desefetivados, na medida em
que seu saber, antes objetivado na "matéria natural"
pela sua ação concreta, teleológica,
degradou-se ao se transformar, pela lógica do capital,
em trabalho abstrato.
Dessa transformação de trabalho concreto
para trabalho abstrato também resulta que as
oportunidades de realização do homem no e pelo
trabalho estão corrompidas, pois aquele não
mais se reconhece enquanto ser social, produtor de bens sociais,
mas vê-se apenas como ser individual que se relaciona,
de forma exteriorizada e fragmentária, com outros homens
e com o produto dessa relação: o mundo das coisas
estranhas e úteis. A esse fenômeno Marx chamou
"estranhamento".
Assim, sob a divisão social do trabalho e sua forma
mais acabada, a alienação do trabalhador na
esfera produtiva, a possibilidade de realização
omnilateral do indivíduo enquanto ser social, ou seja,
a possibilidade de experimentar uma "vida plena de sentido",
parece ter-se transferido, privilegiadamente, para a esfera
do não-trabalho, esfera de um tempo tido como secundário.
A ética do trabalho transformou-se, pois, em ética
do consumo. E é nesse âmbito que em um primeiro
momento parece localizar-se, para o sujeito estranhado, a
possibilidade de experimentação de uma atividade
humanamente mais satisfatória.
Desse modo, para se contrapor ao mundo do trabalho, ao mundo
das atividades mais graves, as atividades lúdicas,
particularmente as infantis, permanecem envolvidas em uma
espécie de "aura de inocência" e de
desinteresse para o mundo adulto, sugerindo, ainda, uma evasão,
um intervalo na vida real.
Acontece que a vida cotidiana, como bem analisa Agnes Heller
(1992), é heterogênea, e no seu interior não
podemos manter em reflexão, simultaneamente, todas
as nossas capacidades ou atividades. Quanto mais profundamente
nos entregamos a uma atividade seja ela qual for: jogo,
trabalho, o aprendizado de uma nova língua etc. ,
esse mergulho significa a "suspensão" das
demais sem, contudo, perder o caráter orgânico
com a vida ordinária.
A necessidade e a motivação é que determinarão
a rotatividade de cada atividade hierarquicamente organizada
no dia-a-dia. Em outros termos, a necessidade e a motivação
determinarão qual ou quais atividades ficarão
"suspensas", "desaparecerão", e
qual ou quais receberão de nós toda a concentração.
Como se vê, essa faculdade de nos "transportar"
para além do imediato é uma característica
que encontramos não só no jogo, mas em toda
e qualquer atividade à qual nos dedicamos com certo
abandono, seja ela lúdica ou não.
Como brincar ou jogar são atividades costumeiramente
atribuídas às crianças, aquelas que,
por um privilégio de classe, não necessitam
dividir hierarquicamente esse tempo lúdico com o tempo
de trabalho produtivo, parecem permanentemente envoltas em
um círculo mágico, à mercê do seu
encanto e ilusão. Todavia, antes mesmo de se constituir
em entretenimento, o jogo ou a brincadeira têm, para
qualquer criança, um valor cultural (ainda que disso
ela não tenha consciência) construído
a partir do mundo que a rodeia e do qual retira o conteúdo
dessas atividades. Assim compreendidos, o brincar e o jogar
infantil não podem ser considerados como um simples
passatempo. Representam, antes, uma atitude lúdica
criadora e socializante, pois transportam as crianças
para diversas experiências, abrindo-lhes as portas para
o entendimento da realidade e ajudando-as a construir suas
próprias categorias axiológicas.
A partir desse ponto de vista sociocultural é possível
perceber que, longe do aspecto que poderia caracterizar inocência,
desinteresse, os jogos, assim como alguns elementos que lhes
servem de suporte e algumas brincadeiras, têm um sentido
claro de preparação para a vida adulta.
No caso mais específico do objeto deste estudo
os jogos eletrônicos , busca-se analisar até
que ponto eles cumprem esse papel ao ajudar as crianças
a se adaptarem às mudanças tecnológicas.
Todavia, até que ponto adaptar-se à tecnologia,
em si, significa tornar-se mais apto ao futuro?
Não restam dúvidas quanto ao fato de as inovações
tecnológicas exigirem um certo saber especializado,
bem como o desenvolvimento de determinadas capacidades intelectivas
e mesmo motoras. O que não é tão evidente,
porém, é se esse desenvolvimento técnico
far-se-á ou não acompanhar de um "desenvolvimento
da personalidade humana" [3].
Em um universo cada vez mais automatizado, onde em tese desaparece
o homo faber para dar lugar ao homo communicans, onde estão
reduzidas as noções de transformação,
de processo, de mudança, de criação e,
no que diz respeito aos saberes, a qualificação
do indivíduo, quais as "novas" virtudes e
habilidades requeridas por um mercado cada vez mais ajustado
pela técnica e gerador de uma mais rígida segmentação
e dessencialização do trabalhador?
Por outro lado, com o emprego cada vez maior da tecnologia
em todos os setores, o homem terá mais tempo livre
para a elaboração e a fruição
da cultura. Não obstante, é preciso indagar:
1º) de que tipo de cultura estamos falando ou deveremos
falar; 2º) o que significa a "simplificação"
trazida pela técnica a todos os processos da vida coletiva
[4],
e se esta simplificação, juntamente com a cultura
de massa, a cultura do espetáculo, poderá obstaculizar
e corromper ainda mais a "virtude intelectual" dos
indivíduos, dificultando-lhes a possibilidade de, nesse
tempo livre, desenvolver uma condição crítica
para além do consumo padrão.
Dumazedier, considerado o pioneiro da sociologia do lazer,
reconhece que "a passagem do tempo livre ao tempo de
lazer não é só uma questão de
números de horas livres, mas supõe, sobretudo,
um espírito novo, em que o sujeito deverá usar
o tempo livre para a realização de si e para
a participação social" [5].
Nesse sentido, nossas indagações anteriores
podem também ser colocadas de outro modo: por estarem
os sujeitos expostos desde a infância ao simulacro,
eles terão melhores condições para buscar,
nesse tempo livre, envolver-se em um processo de autoformação,
tornando-se sujeitos mais livres, independentes das influências
condicionantes? Enfim, tornar-se-ão sujeitos que, conhecendo
bem a "arte ilusionista", compreenderão melhor
as diferenças entre arte e técnicas audiovisuais,
entre ciência, pseudociência e mídia, entre
o real concreto e a realidade virtual, entre o imaginário
do jogo e o imaginário social?
Se, como dissemos anteriormente, na sociedade moderna a possibilidade
de realização do indivíduo foi transferida
ao menos aparentemente para fora do processo
produtivo, faz-se necessário uma investigação
na esfera do não-trabalho para verificar as reais oportunidades
de auto-realização e de emancipação
humana no tempo-de-não-trabalho, no tempo-livre.
Retirar a "aura de inocência" que protege
a esfera do lazer adulto e as atividade lúdicas infantis
representa, pois, desnudar os mecanismos ideológicos
que obstaculizam a possibilidade de emancipação
do ser social para além da esfera produtiva. Contudo,
tomar como dialética a relação entre
tempo de trabalho e tempo de lazer significa analisar os mecanismos
ideológicos e de estranhamento a que estão submetidos
os indivíduos em todas as esferas da vida social sob
a égide do capital. E tal exercício impõe
uma outra indagação ainda mais fundamental,
síntese das anteriores: qual ou quais as oportunidades
de se conquistar um "novo espírito" em uma
sociedade que não promoveu, ainda, uma ruptura estrutural
suficientemente capaz de permitir o desenvolvimento de uma
nova ontologia?
A cultura do espetáculo
Acreditando que é especialmente pelo estudo das transformações
históricas que se pode entender a diversidade, a variação
e o papel dos jogos, assim como o conceito de tempo nas diferentes
culturas, investigaremos a contribuição histórico-cultural
dos jogos, particularmente na atualidade movida pela eletrônica,
para tentar desvendar o que há de realmente "novo"
e de "moderno" em comparação aos jogos
chamados "tradicionais".
Os jogos eletrônicos aparentemente pairam acima das
tradições culturais locais, na medida em que
buscam uma padronização definida em escala global
que parece pôr fim às antigas formas lúdicas
de representação social e cultural; conservam
independência em relação à realidade
possível, ou seja, é o lugar por excelência
da virtuosidade técnica, do fantástico, onde
espaço e tempo (reais) são categorias inessenciais.
Traduzem, portanto, a desterritorialização das
culturas lúdicas através de um processo que
já conhecemos como fetichização.
Tudo isso representa, indubitavelmente, novidade que encanta
e fascina. Todavia, essa novidade pode ser também considerada
moderna? Segundo Octavio Paz (1974) a novidade, para ser moderna,
precisa de duas cargas explosivas: ser negação
do passado e ser afirmação de algo diferente,
entendido esse como aquilo que se opõe aos gostos tradicionais
estranheza polêmica, oposição ativa.
O conteúdo de alguns jogos eletrônicos, por
sua vez, não parece sugerir nenhum estranhamento, negação,
crítica, nada de inesperado: cinderelas, torres, dragões
e cavaleiros que se arriscam para salvar a princesa ou a sua
própria honra; às vezes é necessário
astúcia para desvendar enigmas ou, pura e simplesmente,
indica regras de conduta e de comportamento. Tal conteúdo
sugere, talvez, um testemunho histórico, só
que este vem destituído do peso da tradição
e do mistério. Através da combinação
entre conteúdo (aparentemente tradicional) e forma
(moderna), é possível, porém, observar
a "reprodutibilidade técnica" dos temas tradicionais,
irreverentemente atualizados (Benjamin).
Na verdade, tais jogos parecem oferecer àqueles que
os manipulam a possibilidade de se inserirem em uma "realidade"
mais rica de emoção do que aquela que poderiam
encontrar em suas próprias experiências, particularmente
quando estas não correspondem às suas potencialidades
criadoras. Enquanto a realidade é muitas vezes tomada
como ilegítima, no jogo o que importa é a fantasia
vivida eletronicamente. Assim sendo, os videojogos, principalmente
os que sugerem violência, possivelmente funcionam como
uma espécie de catarse para a angústia, o sonho,
e também para a inclinação que jovens
e crianças têm pelo perigo, pelo desafio competitivo,
pela experiência.
E, nesse sentido, os videojogos parecem possibilitar uma
inserção cultural, ainda que virtual, não
muito diferente das experiências vividas com os jogos
"tradicionais" e com as antigas competições,
que em nosso estudo estarão incluídas na mesma
categoria do jogo.
Na maioria das vezes, as competições aconteciam
exatamente para demonstrar a superioridade dos homens, de
grupos, de comunidades ou de países. Impulsionados
pelo imperativo da honra, da fidelidade ou justa causa, sua
relação com a cultura era objetiva e seu resultado
notadamente importante para o grupo.
Todavia, ainda que os jogos eletrônicos repitam temas
épicos em uma sociedade que decretou a morte
da epopéia , o imperativo a que se obedece ao
manipulá-los é o da exaltação
do ego. Sua relação com a cultura, porém,
não deixa de ser também objetiva, na medida
em que é esse o sintoma encorajado pela cultura narcísica
onde se movem esses sujeitos.
—
Como acentuado no início, consideramos que jogos,
brinquedos e brincadeiras, de uma maneira geral, atuam como
educadores de atitudes. Pretendemos ressaltar, com isso, que
o mundo dos jogos e das brincadeiras não está
situado apenas no mundo do fantástico, do ilusório.
O brincar ou o jogar são, antes, facetas de uma atividade
arbitrária e objetiva; representam um mergulho na cotidianidade
vivida mais do que um divertimento evasivo ou desinteressado.
Assim, longe de constituírem um objeto menor para a
análise sociológica, os jogos podem ser elementos
reveladores da degeneração ou da emancipação
da cultura em determinado momento histórico. Isso significa
que tomamos os jogos como substância da sociedade, a
ponto de, direta ou indiretamente, influírem no destino
das culturas.
No que diz respeito aos jogos na era da eletrônica
marca indelével da sociedade contemporânea
, é possível ver também ali mais
uma vez representada a contradição própria
do mundo moderno: a esclerose do saber frente à sofisticação
tecnológica.
Em trabalho anterior [6]
procuramos chamar a atenção sobre o papel e
a importância dos jogos, dos brinquedos e das brincadeiras
no processo de socialização infantil. Analisando
trinta relatos sobre a experiência lúdica de
pessoas que viveram a infância entre 1930 e 1980, pudemos
perceber uma certa diluição, ao longo do período,
das brincadeiras livres, em função especialmente
do desaparecimento de espaços adequados à sua
prática (tais como quintais e terrenos baldios), bem
como a substituição de determinados brinquedos
que antes eram criados e confeccionados pelas próprias
crianças por brinquedos industrializados que representam,
não raro, uma réplica perfeita, miniaturada,
de objetos do mundo adulto [7].
A cada subespaço tratado rural, urbano, quintal,
rua corresponde um tempo diferente. No espaço
rural passado mais remoto detectamos uma relação
determinante de vizinhança e consangüinidade.
Esse espaço era, pois, um lugar de iguais. Quanto à
cidade, pelo menos até a década de l960, aproximadamente,
é também possível, nessa pesquisa, concebê-la
como um espaço mais ou menos homogêneo, onde
o quintal e a rua eram quase que uma extensão da casa.
As transformações urbanas, entretanto, diferenciaram
cada vez mais esses subespaços, assinalando fortemente
os limites entre o público e o privado quando, então,
a discussão sobre o ordinário da vida passa
por outros determinantes relações impessoais
e espaços diferenciados, por exemplo.
Assim, até aproximadamente a década de 1960,
a conceitualização de tempo e espaço
estava determinada mais pelo aspecto qualitativo das relações
sociais e de produção em uma espécie
de aliança entre homem e natureza, aliança essa
marcada, legitimada pelo trabalho agrícola. Nesse período,
o ritmo da vida é mais lento, a privacidade é
pouca e o brincar não é uma atividade para acontecer
somente nas horas de folga.
As crianças que tinham tarefas a seu encargo, misturadas
aos adultos, aprendiam um pouco mais sobre o mundo que as
rodeava: cuidar da horta e da criação, observar
como era feita a lingüiça, o sabão, como
arrear o cavalo... tudo isso, na verdade, sugere muito mais
deleite do que trabalho. Também a aproximação
entre adultos e crianças no processo de trabalho indica,
entre outras coisas, que a socialização acontece
sempre através de uma dinâmica tensa, de um processo
de reciprocidade em que socializante e socializado trocam
continuamente de papéis, influenciando-se uns aos outros.
Com a urbanização, porém, "no mundo
espacializado pelo trabalho, a intenção do trabalhador,
sua vida moral enquanto pessoa, sua afetividade importam pouco;
para a sociedade ele só conta enquanto engrenagem destinada
a realizar um gesto particular" (Matos, s/d). A crescente
produtividade nas cidades mina, pouco a pouco, aquela estrutura
mais homogênea. O espaço passa a ser um espaço
de desigualdades, de independência, provocando um processo
de "desenraizamento" (Bosi, 1987) em que a tradição
cultural, incluíndo aí o brincar, transforma-se
cada vez mais em atividade-consumo (pelo tipo e quantidade
de brinquedos). Com a industrialização, o brinquedo
escapa "do controle da família, tornando-se cada
vez mais estranho não só às crianças,
como também aos pais" (Benjamin, 1985, p. 246).
Podemos, então, perceber que não é só
através da divisão do processo de trabalho que
se rompe a integração do homem com a natureza
e com suas raízes. A reformulação do
espaço social em função também
da tecnologia, e seguindo, pois, os mesmos mecanismos do processo
produtivo, se encarrega de apagar os vestígios, os
signos que encontrariam eco em nossa memória. Portanto,
o "desenraizamento" do sujeito nada mais é
do que a destruição de todas as marcas, dos
símbolos materiais ou rituais que constituem,
com ele, o passado.
Através das brincadeiras tradicionais, as crianças
aprendiam, quando misturadas às tintas, areia, ossos,
palhas, madeira etc., que a todo processo de construção
está ligada a idéia de desconstrução,
de transformação, de mudança destrutiva
[8].
Já com os jogos eletrônicos as crianças
parecem alienar-se em sua atividade lúdica e passam
a empregar cada vez menos os seus sentidos [9]
exceto particularmente a visão: observam efeitos
mirabolantes na tela, sem perceber que tais efeitos são
o resultado de combinações numéricas
matematicamente organizadas por um adulto (o programador).
A interação da criança com o meio é
mínima. E, logo após descobrir a seqüência
lógica daquelas combinações, nada mais
a surpreende, nem mesmo perceber que todos os seus conhecimentos
estão reduzidos a um gesto: apertar o botão
certo no espaço de tempo previamente programado [10].
Paradoxalmente, junto à infinidade de objetos e estímulos
produzidos para consumo, da crescente liberdade de comunicação,
verifica-se a diminuição das experiências
cambiáveis e de conteúdos comunicáveis [11].
A fruição dos objetos é cada vez mais
alienada e esta alienação, por seu lado, vicia
cada vez mais as faculdades humanas.
Frente a esse impasse, coloca-se a hipótese de que
a tendência dos jogos eletrônicos é atuar,
particularmente entre as crianças, como legitimador
da lógica burguesa, na medida em que através
deles consegue-se "educar" as pessoas, acostumando-as
a interagir com a ordem, além de buscar uma melhor
qualificação para o capital. Ou seja, o sistema
de representação e de valores sociais atinge
cada vez mais e o mais cedo possível o maior número
de pessoas, podendo até torná-las aptas a decifrá-lo,
mas quase nunca a questioná-lo.
Se houve um momento em que o apelo ao mercado consumidor
da cultura de massa dirigia-se a uma faixa etária que
variava mais ou menos dos 14 aos 60 anos, atualmente esse
limite ampliou-se [12].
Alcança a criança acelerando sua autonomia [13]
em detrimento da infância, ao mesmo tempo em que infantiliza
o adulto que passa a disputar com a criança a posse
do videogame ou particularmente do computador que, desse modo,
ora é instrumento de trabalho, ora é objeto
de entretenimento.
Nesse sentido o computador, por um lado, aprofunda o recolhimento
trazido pela televisão e, por outro, prenuncia aquilo
que acontece de forma mais ampla na sociedade: o desaparecimento
da divisão por faixa etária.
Essa ampla "geração eletrônica"
tem, pois, que aprender a decifrar os códigos e sinais
que lhe são apresentados pela "comunidade global",
ao mesmo tempo em que é freqüentemente submetida
a "testes de inteligência" para medir-lhe
a rapidez de raciocínio. Esses testes de múltipla
escolha servem para "medir" o conhecimento e a capacidade
que o indivíduo tem de dar respostas imediatas, cronometradas,
em que a elaboração do pensamento, a meditação,
a ponderação, dão lugar, mais comumente,
à indução. Exige-se, pois, nem tanto
maturidade existencial, mas rapidez mental [14].
As novas tecnologias e as conseqüentes transformações
socioestruturais, emocionais, de linguagem e de comportamento
que elas impõem já às crianças
e aos jovens parecem, pois, deslocar o conhecimento empírico
em direção a um conhecimento mais abstrato e
harmonioso, dando uma idéia de sociedade que pode ser
ordenada por ajustes técnicos e pela manipulação
de botões: basta encontrar a combinação
adequada e tudo se ajusta na medida exata.
Atualmente, paralelo às possibilidades de desenvolvimento
das habilidades motoras e intelectivas, esses jogos ajudam
o indivíduo a interagir mais rapidamente com o establishment
cultural e social. Basta lembrarmos que o conteúdo
dos jogos eletrônicos é tecnicamente controlado
e que as "respostas", as "saídas",
devem ser buscadas por meio do processo de indução,
ou seja, pela tentativa de erro e acerto, experimentando apenas
as possibilidades que o jogo oferece. Parece, pois, tratar-se
de uma versão nova, e mais eficaz no que diz respeito
à razão utilitária, do modelo de jogo
idealizado por Platão [15].
Trata-se, na verdade, de um jogo que lembra a todo momento
a ineficácia de se buscar saídas alternativas
para além do "possível", pois no seu
âmago triunfa a regularidade, a identidade, a norma.
Não obstante, a superação dessa racionalidade
adequada ao capital deve ainda ser buscada na cultura
mas de sentido completamente diferente da cultura de massa
e na estética enquanto projeto cultural que
desmascara a superficialidade da espetacular cultura pós-moderna,
e entabula a relação dos homens com o futuro.
2003
Notas
1 |
Referimo-nos à pesquisa que desenvolvemos como
tese de doutoramento na USP, em 2000. [VOLTAR] |
2 |
"O homem de hoje não
cultiva o que não pode ser abreviado" (Valéry,
apud Benjamin, 1985, p. 206). [VOLTAR] |
3 |
Ver Antunes (1995), particularmente
"Trabalho e Estranhamento", pp. 121-34. [VOLTAR] |
4 |
Como afirmam os apologistas da
técnica Bill Gates em particular ,
todo processo tecnológico e informacional objetiva
simplificar e humanizar a relação homem/máquina.
A respeito da estrada do futuro, B. G. promete: "Ela
vai permitir capacidades que parecem mágicas
quando descritas, mas que representam a tecnologia em
ação, para fazer nossas vidas mais fáceis
e melhores. (...) A estrada da informação
vai dar a sensação de que todas as máquinas
intermediárias entre você e o objeto de
seu interesse foram removidas. Você indica o que
quer e pronto! Na hora!" (Gates, 1995, pp. 90-1,
grifos nossos). Sobre a "tendência humana"
a antropomorfizar as coisas ele tranqüiliza: "Algumas
pessoas, ao ouvir falar de software e interface social,
acham horripilante a idéia de um computador humanizado.
Mas acredito que mesmo essas pessoas vão acabar
gostando dele, quando experimentarem. (...) Em programas
como o Bob, da Microsoft, eles [pesquisadores] demonstraram
que as pessoas tratarão os agentes mecânicos
que têm personalidade com um grau surpreendente
de consideração" (idem, pp. 113-4).
[VOLTAR] |
5 |
Joffre Dumazedier, em entrevista
publicada na revista Sciences Humaines, no 44, novembro
de 1994, pp. 36-9. Ver, do mesmo autor, A Revolução
Social do Tempo Livre. Sobre o mesmo assunto, ver, ainda,
Gorz (1982), Offe (1989) e particularmente Antunes (1995).
[VOLTAR]
|
6 |
Trata-se de nossa dissertação
de mestrado "O Lúdico no Interior Paulista:
Processos de Mutação e seus Significados",
defendida na Faculdade de Ciências e Letras da
Unesp, campus de Araraquara, em 1992. [VOLTAR] |
7 |
A semelhança dos brinquedos
com os objetos do mundo adulto chega a tal ponto que
muitas pessoas já foram assaltadas sob a mira
de um revólver de brinquedo! [VOLTAR] |
8 |
"Não uma destruição
qualquer, da negação do todo, indistintamente,
mas uma destruição consciente, planejada,
pensada, na qual se escolhe o que se pretende preservar,
a que se pretende chegar e, por conseqüência,
o que se pretende acabar. Não há construção
nova sem esse tipo de destruição: rompe-se
a pedra e constrói-se o dique; tira-se o barro,
faz-se o tijolo; corta-se a lã e o tecido, monta-se
a roupa; tritura-se o trigo, faz-se o pão"
(Lima, 1989, pp. 80-1). [VOLTAR] |
9 |
Em nossa época, paralelo
à esclerose de determinados saberes, assiste-se
ao ocaso daquilo que é "obra da inteira
história universal: a educação
dos cinco sentidos". K. Marx, Manuscritos Econômico-Filosóficos.
[VOLTAR] |
10 |
Talvez seja oportuno retomar
aqui o alerta de A. Smith ao analisar os efeitos da
industrialização e da conseqüente
mecanização no século XVIII: "A
uniformidade de sua vida estacionária corrompe
naturalmente também a coragem de sua mente. [...]
Ela destrói mesmo a energia de seu corpo e o
incapacita a empregar suas forças com vigor e
perseverança, a não ser na operação
parcial para a qual foi adestrado. Sua habilidade em
seu ofício particular parece assim ter sido adquirida
à custa de suas virtudes intelectuais, sociais
e guerreiras" (A. Smith, apud Marx "Divisão
do Trabalho e Manufatura", p. 284). [VOLTAR] |
11 |
Nossa pesquisa de mestrado também
aponta, no que diz respeito aos jogos eletrônicos,
que estes parecem marcar, de forma inequívoca,
o fim de um tempo em que se podia detectar, em cidades
grandes e médias, uma cultura regional, um estilo
de vida local, especialmente no que tange à troca
de experiências, aos gestos significativos, ao
contato dos corpos nos momentos épicos da infância:
"as experiências estão deixando de
ser comunicáveis" e "o valor de certas
afinidades singulares entre a alma, o olho e a mão"
não mais transparece nas relações.
O saber contido na tradição se desvanece:
não há o que ser cambiado, ensinado (Benjamin,
p. 1985). O sistema de informação (computadorizado,
tecnificado), eixo central no processo de "mundialização
da cultura", parece, pois, exacerbar o que já
previra o pensador: estamos cada vez "mais pobres
em histórias surpreendentes" pois "tudo
está a serviço da informação"
e em "evitar explicações". Ilustrativo,
nesse sentido, é o filme Denise Está Chamando.
[VOLTAR] |
12 |
Em função do aumento
da expectativa de vida dá-se mais atenção
hoje à chamada 3ª idade, principalmente
sob o ponto de vista do consumo. Todavia, não
é nossa intenção abordar essa faixa
etária. [VOLTAR] |
13 |
Para a criança, manipular
objetos que fazem parte do "mundo adulto"
é algo muito significativo. Primeiro porque ela
está sempre aberta para experimentar algo novo,
diferente; a criança tem pressa de se tornar
adulto para poder fazer coisas que são vetadas
ao "seu" mundo. Segundo: por ter um senso
de desafio que supera o medo, a criança aprende,
não raro, com muito mais rapidez e eficiência
do que alguns adultos, a mexer em instrumentos eletrônicos,
particularmente em computadores. Isso significa, sem
dúvida, alcançar status e uma certa autonomia
no seu mundo ainda infantil. [VOLTAR] |
14 |
Vale a pena recorrer novamente
a A. Smith: "A inteligência da maior parte
dos homens, diz A. Smith, desenvolve-se necessariamente
a partir e por meio de suas ocupações
diárias. Um homem que despende toda a sua vida
na execução de algumas operações
simples [...] não tem nenhuma oportunidade de
exercitar sua inteligência. [...] Ele torna-se
geralmente tão estúpido e ignorante quanto
é possível a uma criatura humana"
(apud Marx, idem, ibidem). [VOLTAR] |
15 |
Platão só admitia
liberdade plena das regras dos jogos para as crianças
de até seis anos. A partir dessa idade as regras
deveriam permanecer fixas e inalteradas, pois caso se
habituassem às mudanças nas leis do jogo,
os jovens desejariam experimentar mudanças também
nas leis da cidade, o que, segundo ele, seria muito
perigoso para a democracia ("Les Lois", VII).
[VOLTAR] |
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Fátima
Cabral é professora do Departamento de Sociologia
e Antropologia da Unesp, campus de Marília.
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Agradecemos a Francisco Costa, editor da Revista
USP, que gentilmente permitiu esta reedição.
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